Monday, July 30, 2007

As Segundas Feiras


Já pouca coisa me espanta, ou deveria espantar, cada vez mais concordo com a visão de Kusturica acerca do mundo, sobretudo quando em episódios do meu dia parece que a única coisa que falta é mesmo uma banda no fundo da sala a tocar excelentes acordes.

Começo o meu dia de manhã bem cedo, acordo como sempre, um banho em água fria para retemperar forças, e aí vou eu para um dia de trabalho.
Como é habitual chego sempre cedo demais. Por defeito de fabrico penso sempre que demoro imenso tempo a fazer as coisas, dando uma margem de segurança que chega a ser rídicula.
Uma das minhas primeiras pacientes da manhã está numa box indívidual a acabar um tratamento. Ao seu lado está uma senhora com os seus 30 anos a ser tratada à anca. Alguém me explique como se eu fosse muito burro ou demasiado puritano, quem é que vai fazer tratamentos a um anca usando uma peça de roupa interior mínima, vermelha e transparente???
Como não é minha paciente, para além do cumprimento da praxe, não lhe disse mais nada. Pelos vistos a senhora parece que estava a minha espera para se queixar dos choques eléctricos que estava a receber... quer dizer queixar não é bem o termo pois segundo palavras da própria "levar assim uns esticões de vez em quando até que sabe bem"... o alarido e as queixas só terminaram enquanto eu lhe tirava aquilo enquanto ela se inclinava excessivamente sobre mim.
Compreendi desde logo que a intensidade era demais e que a corrente, seguramente, lhe tinha queimado uns quantos milhares de neurónios.
Adiante.
A minha hora zen com os meus miúdos lindos da neonatologia tinha de ser estragada por uma conversa metafísica sobre fé e religião.
Certo indivíduo cruzou Herman Hess com Jesus Cristo e inventou a roda. O problema não está aí, o problema está em tentar-me convencer de teorias New Age recicladas, e fazer disso uma bioética estranha e desviada. Por mim tudo bem, mas escusava de me estragar o melhor momento do dia com divagações.
É que não há nada mais chato do que escutar monólogos assertivos de pessoas repletas de certezas.
E hoje como o dia foi mais comprido, fui fazer a boa acção do dia tratando um amigo do meu pai, com os seus 53 anitos que se queixava de uma lombalgia persistente.
A história que ele me contou perante o olhar atento da sua esposa e filho não batia muito bem com os sintomas, mas nada de extraordinário, avaliei, tratei, receitei alguns exercícios e saí dali com a consciência tranquila por ter feito um bom trabalho.
De facto o senhor estava melhor.
Tanto que se ofereceu para me acompanhar ao carro.
Aproveitando aquele momento a sós confessa que tem algo para me contar.
Afinal uma lesão ao sair do carro, transformou-se na versão mais genuína de uma lesão traumática por sexo extraconjugal praticado no chão:

"ela lá se desviou, ou eu apoiei mal o braço, o certo é que depois estava eu a tomar o meu banhinho e senti uma pontada aqui de lado, que me descia até à perna"

pronto, pensei eu, isto faz muito mais sentido, enquadra-se, é um caso clássico de lesão traumática, mas porquê os pormenores?

"é que pronto, eu estou a contar isso ao Daniel porque sei que isto é a mesma coisa que falar com o médico, sabe como é, uma pessoa casada à tanto tempo tem vontade de experimentar coisas novas, dar assim umas facadinhas, ainda para mais ela é mais nova e tal, puxa mais por mim"...

MAS PORQUÊ OS PORMENORES???

"olhe... (pausa comprometedora, enquanto a esposa acenava do 8º piso para me deixar ir embora que eu tinha alguma pressa)... é que estou aqui a pensar, eu não quero ficar pior, mas não queria ficar tanto tempo sem dar uma queca, acha que para a semana já posso ir ter com a minha amiga?"

(ahhh, já te estou a perceber) "em princípio sim, veja como se encontra amanhã e se estiver sem grandes dores no fim de semana já pode recomeçar com calma, mas nada de exagerar, tente fazer uma coisa mais calminha" (tipo, experimente com a sua mulher antes, não é a mesma coisa, mas sempre dá para fazer o test drive)

"claro, claro, daquela vez é que a gente se entusiasmou e tal, da próxima vez é na caminha, que eu tenho que me poupar"


Sim senhor.

A realidade consegue ser mesmo melhor que qualquer ficção.
E hoje é só segunda feira.

Sunday, July 29, 2007

Inércia

Devolveu-me a chave partida pela manhã.
A culpa não foi minha, disse-me ela, a chave encravou enquanto rodava, quando a tirei, já metade tinha ficado lá dentro, presa no seu interior.
Fitava-a enquanto segurava na mão um canhão novo, pensando insistentemente se em casa teria todas as ferramentas necessárias à substituição. Respirei fundo, aspirando o seu perfume e o aroma do tabaco, porventura alguma feromona encontrava-se misturada naquele bouquet, o certo é que não me conseguia incomodar por tão pouco.
Voltei para casa, com o embrulho, mas insistentemente sozinho. Nem a culpa que ela me queria passar caminhava comigo. Entrei em casa pela porta que tinha deixado aberta, e resolvi entreter-me com um martini antes que a vontade chegasse para me pôr ao trabalho.
Segurava numa das mãos aquele pedaço de metal retorcido ao qual faltava a ponta, pensando como aquela poderia ser uma excelente metáfora se me desse ao trabalho de pensar no seu significado.
O certo é que estava por minutos a substituição, e as poucas cópias das chaves daquele canhão, permaneceriam todas comigo.

Recordas-te quando me ofereceste a chave?- perguntava ela num entardecer junto à janela.
Disse-lhe que sim, que me recordava.
Não sou homem para me emocionar muito com grandes gestos, apesar de deixar fluir o que eu sinto em gestos naturais de continuidade. A chave não caíu de nenhum avião, não apareceu no meio de rosas, nem sequer me dei ao trabalho de lhe preparar um embrulho condizente com tão solene momento. Apareceu naquele momento, porque era preciso que aparecesse.
Como a chave de uma saída de emergência trancada numa discoteca em chamas.
A música pode continuar a ser boa, mas toda a gente parou de dançar, de beber e de engatar para se acotovelar junto à saída... e eu sou apenas o tipo que apareceu com a chave.
Disse-lhe isso, mas seguramente, não era essa a resposta que estava à espera.
Não me surpreendeu, desde o primeiro encontro, em que falávamos de trivialidades numa esplanada em frente a duas bebidas de sabor exótico, tirei logo as medidas ao alcance das tuas palavras.
Naquele diálogo de surdos disse-te o que querias ouvir e não tive remorsos. Afinal tu ditaste as regras e eu aceitei segui-las, para quê fazer grande alarido acerca disso?
Aquela não era a resposta que querias, mas confesso que me cansa o nosso diálogo de surdos em que a única saída possível sería um monólogo infínito com breves apontamentos meus para quebrar a rotina.
Não tenho paciência para ser uma parede no teu jogo de ténis.
Por muito bem que fiques de saia, do alto desse par de pernas fantásticas.
E como não sou homem a espaços, não gosto de me esconder enquanto falas.
Acendo o cigarro que te cravei e fico a ver o néon a acender e a apagar naquela espelunca que fica em frente a minha casa. Atiro a chave para um canto e equaciono se uma noite dormida com a porta aberta será tão má assim.
O sono não me tira de certeza, não sou fã da segurança, com sorte o ladrão que aqui entrar vende-me meio conto de ganza para embalar esta inércia.
Que se foda.
Dou uma última olhada no telemovel, sabendo desde já que se encontra vazio.
Eu sei que não me ligas, não depois do que fizeste.
Acabo o martini e apago o cigarro num cinzeiro improvisado que arrumo na cozinha.
A porta ficou aberta.
Mas nada entrará por lá, excepto os pesadelos.

Preso por Fios

Quero agradecer a todos os trabalhadores conscienciosos que trocam um salário modesto e 8h de jorna por transformarem a minha identidade num número.
Fico-lhes grato enquanto preenchem formulários formatados, enquanto diligentemente vão fazendo cruzinhas na identidade de género, enquanto arquivam uma folhinha num arquivador gigantesco.
Não lhes posso agradecer o suficiente por gerarem os meus impostos, ditarem as minhas rotinas, subjugarem-me a um número mecanográfico.
E como lhes poderei agradecer as estatísticas, os desvios padrão, o trespasse de infomação?
E continuo a agradecer a toda a indústria do marketing por definirem o meu gosto, por me indicarem o meu perfil, por me hierarquizarem segundo o meu rendimento, estrato social, idade e sexo, por me encherem a caixa de correio de publicidade endereçada ou não.
E aos senhores das alfândegas o meu muito obrigado por desenharem uma linha no chão e decidirem que para aqui fica Portugal, e do outro lado a anarquia. Não lhes reconheço o suficiente por me protegerem desses ilegais indocumentados que por aqui aparecem, por decidirem que uma folha carimbada é igual a dignidade.

Por todos os cartões que tenho, acendo uma velinha.
E agradeço por haver tanta luz a iluminar a minha vida (conformada em direcção à cova).

Saturday, July 21, 2007

Karma


"Nem sempre temos aquilo que queremos, mas por vezes conseguimos ter aquilo que precisamos"

Não esperaria, não esperaria que me atraísse a calma pela manhã embalada pelo sol.
Não esperaria que encontrasse paz num caminho ladeado de árvores e com as minhas mãos fazendo as margens de um rio.
Não esperaria que a minha voz fosse mais doce num sussurro, nunca esperei comover-me.
Não, nunca eu. Do alto do meu reino gelado, do alto do meu trono de indiferença, na minha metafísica, na minha bipolaridade, na minha separação entre mundos.
Não nunca eu, não a pessoa que aqui está, não me conheço.
Nunca esperei ter de ser lento, envolvente, delicado, mas como sempre, por um sorriso consigo sê-lo.
E pensaria um dia em mim contrariado, assustado, encurralado a um canto, desperto para uma agressividade latente, como um bicho selvagem encurralado numa armadilha profunda.
Não esperaria que do outro lado do ódio existisse um amor.
A minha mão não tremeu quando avançava, é estranho, sempre pensei que tremeria.
A minha alma não duvidou quando tocou na tua, o que é estranho, sempre pensei que duvidasse.
E enquanto sorrias, ainda de olhos fechados (era tão de manhã...) não conseguias ver como eu estava sozinho ali naquela divisão a rir também, para ti.
E eu não te soube dar o melhor de mim, eu dei-te o que não tinha, o que não existia em mim.
Eu não te podia dar o que não tenho, mas por um sorriso teu, eu soube ir lá buscá-lo, a partes de mim que não existem.
E tu não sabias (como poderias?) mas voltei a olhar para uma parede em branco e ver lá o teu sorriso (como saberias?) e lá estavas tu, a sorrir para mim... e eu de novo a descobrir que aquilo que não tenho ainda é a melhor parte de mim.
Como a chama onde ainda arde a minha culpa, essa eterna chama que apenas existe para produzir sombra, não me desarmas, não me tiras as sombras, não apagas essa linha indelével com que se fazem os meus fantasmas, mas por aqueles instantes, mesmo rodeados por gente, nunca estive tão sozinho... e desconfio que o teu mundo terminava onde as minhas mãos começavam, e que, mesmo frias, geladas pelos anos de indiferença, aquilo que as aquecia era muito maior do que eu.
E não me recordas de ninguém, o nosso maior segredo é que eu já consigo ver o que um dia serás, ler-te como um livro aberto o qual nunca ninguém ousou ler é a minha capacidade escondida que resistiu, sabe-se lá como, aos tempos em que me afundava lentamente nesse líquido espesso de mentira.
Mas não te falo disso porque o nosso diálogo jamais se fará de palavras, porque na forma como comunicamos se desconhecem os recipientes para transportar tão maus presságios.
E podemos sorrir no silêncio, ou ouvir sussurrar-te ao ouvido uma canção de embalar, escutarás talvez um dia, porque eu sei que o fazes, através das paredes, dos pisos e dos kilómetros o único som das minhas lágrimas a baterem no solo, e não são por ti, são por todas as coisas que não tenho, nem nunca poderei ter, são por todas as coisas que existem ali muito, mas mesmo muito longe de mim, e que eu, não sabendo como, as soube ir lá buscar, por um único sorriso teu.

Wednesday, July 11, 2007

Efemeridades.

É fodido mudar o curso das coisas.
Que me desculpem os intervenientes, mas é fodido.
Que se mude a orientação do sol, o tempo das coisas, ou que se descubra uma razão para o inexplicável ainda vá que não vá, é coisa de milagreiro, agora mudar a ordem das coisas é completamente fodido.
Sobretudo quando me dizem para esperar para cumprir qualquer coisa.
Eu só respondo:

- Amanhã a UCI vai continuar cheia, e eu com muito para fazer.

Pedem-me para ter paciência, ou alcançar coisas em tempos razoáveis, ou protelar as decisões que eu acho inoportunas para tempos mais favoráveis. Lixam-me com as conveniências é o que é.
Como os meus colegas que discutem as taxas de juro por uma casita que vão pagar em 30 anos, ou o melhor sítio para comprar a marca X pelo melhor preço.
Que me desculpem a antipatia mas não sei fazer assunto de trivialidades.
É que me atrai mais o Sr. M. quando me conta a melhor maneira de fazer uma canja com uma galinha caseira, ou o saliva que produz quando aguça o apetite para um bacalhau cozido com bróculos que já encomendou pelo seu regresso ao fim de 3 meses.
Não sei falar do sudoeste quando eu estive há bem pouco tempo em Paredes de Coura, mas consigo ter grandes conversas com o Sr. J que para além de me odiar e de não dizer uma palavra, tem as 2 horas mais animadas do dia quando está comigo.
Não percebo quem se preocupa mais com aquilo que aparece no meu crachá ou com as designações mesquinhas e progressões de carreira, do que em perceber que a ao seu lado está uma pessoa de carne e osso.
Chamam-lhe a leveza do ser.
Sou o tipo mais pesado do serviço, porque não sei viver entre horários e entre vidas, não sei funcionar com esquemas e dinâmicas, com casas e contas para pagar, com roupa, fodas e noitadas. Mas não espero pelo elevador para subir ao 8º piso nem regateio minutos entre pacientes para sair 20 minutos mais cedo.
De resto tenho fracas mãos, sei pouco e sou homem de poucos sorrisos, não trabalho para ter amigos e não paro para uma conversa de circunstância com a médica do serviço.
Ah e já agora, que compreendam todos que para mim tanto vale um doutor como um senhor aplicado no momento certo, não tenho pretensão de ser um vibrador para masturbar mentalmente aqueles que andam por aí a montar circos de vaidade.
E detesto estagiários assertivos que vomitam sebentas e são os melhores amigos dos pacientes desde o momento que eles entram pelo serviço dentro.
Mas eu sou pesado e não sei viver nos intervalos.
E tenho tanto de pesado como de inconformado.
Quando me sentir leve e realizado, desconfio que a minha morte está próxima.
O mesmo quando pensar que vou comprar qualidade de vida com o salário que recebo ao fim do mês.
Porque de hoje para amanhã a UCI não vai esvaziar e nunca vi lá ninguém que não suasse e tremesse para ficar melhor pelas coisas que esperam por ele lá fora.
Dizem que faz bem.
Mas pelo que vi... a ansiedade ainda mata.
Seja lá, ou no metro às 6h da manhã, onde as pessoas leves se ensardinham para chegar ao trabalho.

Razão para ser Heterosexual.

Impressiona-me a quantidade de coisas que uma mulher é capaz de fazer ao mesmo tempo.

Eu só consigo fazer uma de cada vez.

Pelo menos bem feita...

Tuesday, July 03, 2007

UCI


Hoje revisitei um dos meus paraísos.
É feito por pessoas, tubos, máquinas complexas e um fio muito estreito onde oscila uma vida, e eu posso fazer qualquer coisa para inclinar a balança num sentido ou no outro.
A maior parte das pessoas diria que se trata do mais básico instinto do poder, mas o que eu sinto é mesmo uma tremenda sensação de responsabilidade.
É um risco constante, uma pressão enorme e um stress mental e físico que muito poucos toleram, eu não só tolero como lhe chamo um pequeno paraíso.
Sabe-me bem.
Hoje consegui aumentar em 200 ml o volume basal de uma paciente com uma pneumonia e senti-me a entrar de novo num paraíso perdido.
Estava com saudades! :)


Imagem indecentemente roubada daqui

Monday, July 02, 2007

Ritmos Urbanos

A cidade respira com um só pulmão, mas fala com muitas vozes.
Num dos seus extremos encontramos a solidariedade e uma porta aberta ao bem.
Do outro, marginais revoltados que fazem do medo um modo de vida.
Em comum estes dois extremos têm os bolsos vazios e a esperança vazada.
A maioria fica no centro.
Num centro feito de comodismo, repleto de horas passadas, de vidas que se gastam no meio do trânsito. Abundam as contas para pagar ao fim do mês, e os pequenos prazeres da vida não passam de um docinho no final do café ou uma ida a um restaurante ao domingo.
Com sorte vai-se de férias 15 dias em Agosto, reclamando do tempo ou dos preços feitos para turistas. Paga-se uma casa em 30 anos e um carro em 10, para se ser um desconhecido na primeira e um residente na segunda.
Os outros, estão só de visita, nunca demoram.
Outros ainda compram, explorando o centro, algo bem longe de aqui.
A identidade tem uma só forma, o estatuto.
Por aquilo que se tem, ou por aquilo que se consegue, cumpre-se uma vida e toleram-se afrontas.
A dignidade guarda-se num baú e não lembra à república.
O respeito convém ser ignorado no escadote social.
Somos reféns do medo, quando não saímos à rua. Somos os seus reféns quando odiamos e sonhamos com uma retribuição proporcional do mal que nos é feito.
O espelho médio é uma televisão sempre ligada com o volume baixinho, censurada numa estação num lado do mundo onde nunca iremos parar.


"Queriam-me casado, cotidiano, fútil e tributável?
Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!"
Álvaro de Campos