Wednesday, September 29, 2010

mergulho

Há dias.

Há tantos dias como tantos outros dias, como tantas outras coisas, como tantas outras palavras, palavras leva-as o vento.

Há dias que se fazem assim, em suspiros, em esperas inúteis, em fogachos intempestivos contra muralhas de indiferença. Há dias em que se salvam vidas, e outros tantos dias em que outras tantas vidas se perdem.

Há dias, porque não há outros dias, que terminamos ainda mais pobres do que começamos, e ficamos a desejar de mansinho outras pessoas para as pessoas a quem queremos bem.

Há dias em que o nosso fogo vai consumir-se em negro, riscado na ponta dos nossos dedos, afastados em direcção ao céu. Quem nos vê, toma isso como a despedida possível, o ponto final daquele dia, quando muito só queremos tocar o céu.

Há dias, pois claro é claro que há dias, dias em que te quero aqui, e eles são todos, há dias os outros dias, em que te quero longe daqui, há dias, à sempre um dia atrás do outro, há dias, há dias e dias e ainda mais dias em que se repetem no negro da noite as mesmas palavras, os mesmos conceitos. Faltam todas as virtudes e sobram dias, sobre mais dias, para amanhã peço, como não podia deixar de ser, mais um trabalho de casa ou um apontamento de ti, como sempre no dia que sucede ao dia, não me trazes mais do que as tuas mãos entrelaçadas e o teu regaço crú, convidas-me para nele me deitar, mas não deixas sequer uma palavra ficar, uma palavra entre nós, uma palavra que mais do que significar um dia, significasse outra coisa qualquer, qualquer outra coisa que pudessemos interpor entre nós para dar sentido ao dia, sem que dele guardássemos algo mais que migalhas, migalhas sobre o teu colo e o teu cabelo negro.

Os dias, porque não? fazem-se de ar fechado entre dois mundos, sabem a plástico, secam-se na torrente interminável de ar que corre sobre eles, alternadamente, fazem-se a verde, fazem-se a água, fazem-se no teu olhar perdido em direcção ao tecto, fazem-se de todos os segundos em que eu encolho em frente a ti, e tu me fazes sentir pequenino e encolhido a um canto. Na nossa dança, porque todos os dias, haveremos de dançar, até que a senhora chegue e me interrompa o passo, haveremos de dançar e não deixaremos de contar os dias, não deixaremos de os ver perder-se entre as nossas mãos, e no final perguntar-nos-emos para que serviram todos estes dias e estes ocasos de sol. No final terminaremos, como todos os outros que nos antecederam, inevitavelmente sós, a contar coisas sobre os dias sem notar que os dias são coisas e nós somos os dias, e todos os dias têm fim.

Thursday, September 23, 2010

Blue Train

Ao final do dia somos todos sombras projectadas contra o chão.

Sobre nós, como sempre, o brilho amarelo dos postes de iluminação e à nossa frente, o contínuo pavimento de cimento, onde vamos delineando, em tons de cinzento, a luta do dia.

Estava deitado naquela cama à quanto tempo?
Antes havia um tempo, um tempo para estar deitado, outro para acordar, tomar o pequeno-almoço e levar os filhos à escola, haveria outro tempo para almoçar, outro para lanchar e outro para jantar, havia, no final, um tempo em linha recta, que lhe dizia, em marcas sucessivas, que um dia sucedia ao outro, e aquele que deixava para trás era a véspera de um novo dia.
Agora não havia tempo, só havia um quarto de hospital, e um sono sem sonhos, umas vezes por cansaço a maior parte por drogas, e nada que lhe dissesse "é isto que tu tens para fazer".
Tinham tentado tirar àquele branco imaculado a sua identidade asséptica, aqui e ali, até onde o pescoço deixava rodar, estavam espalhadas fotos de alguém que se assemelhava a si, o calor desbotava as cores e tornava o papel macilento, uma delas tinha caído, colava-se ao chão, quando a recolocaram só restava na sua frente impressa um borrão avermelhado onde dificilmente se distinguiria alguma coisa.
Por vezes tinha visitas. Pessoas da sua vida que o olhavam com piedade mais do que com ternura. Nada mais conseguiam do que renovar a sua vontade em partir. Outras vezes eram os médicos, ou os enfermeiros, ou isto ou aquilo, toda uma panóplia de gente que parecia extremamente ocupada. Assemelhavam-se a maestros de orquestra, limitavam-se a regular o ritmo e a cadência de tudo o que o agarrava cá, se a sua boca emitisse algum som, dir-lhes-ia para parar. Ele estava cansado.

Daquela vez (porque seria?) estava irritado, os dias não eram dias, nem as noites eram noites, e ele não sabia onde estava... mandou à merda um daqueles palhaços enluvados que se afadigavam à volta dele. Pouco tempo depois morreu.
Ainda foi a tempo de descer, passando no bar, para ver o palhaço, já sem luvas, a bebericar café e a comentar entre sorrisos o que ele lhe tinha dito.

E foi por isto que passou aqui.


Outro palhaço, abriu a janela em frente ao seu corpo frio. Dizia que a sua alma tinha de sair por algum lado para regressar até aqueles que o amaram. Todos se riram, e porque não? As máquinas emitiam ruídos surdos e agitavam-se, algumas pediam sangue, outras ar, todas davam vida, mas nenhuma delas sabia como dar paz a ninguém.

Sunday, September 19, 2010

Do Re Mi

A estrada, em cada curva, faz-nos crer que nela abandonamos o que trazemos connosco.
E sobre ela, sobre cada curva, fica um enorme tapete negro que vamos pontuando com estrelas.
A velocidade aumenta, e porque não? Vamos esquecendo as bermas e os figurantes, um dia esta estrada irá levar-nos ao céu de onde nunca partimos...

Hoje, na última curva, descubro que não trago nada comigo, e tudo fica mais fácil. O futuro fica em frente e eu só tenho que o escrever a cada passo.

Hoje vou sonhar, e porque não? Sonhar que nunca parti, nem nunca tive medo, sonhar que o meu coração não é esta pedra empedernida e que será mais leve que uma pena.
Se é para sonhar, sonhemos acordados, que as coisas são possíveis porque as desejamos...
Sonhemos que temos algo para dar, ou para deixar, que do nosso corpo crescerá o fio que nos ligará à terra e nos faça ver, com toda a clareza possível, uma redenção possível e, claro, uma promessa de bem...

Porque tudo começa na ambição de ter tudo para dar sem nada receber...

Wednesday, September 08, 2010

1 rosa vermelha

Faziam um casal bonito.
Assim parados à porta do prédio, ela segurando uma flor vermelha por entre os dedos artríticos, ele amarfanhando o chapéu nas suas mãos nodosas que já conheceram muitos cabos de enxada.
Fazia-lhes bem aquela tentativa de se reencontrarem com o futuro, com as promessas de coisas boas que se entalam com carinho em lençóis e aquários de plástico rígido.
E logo à partida assustavam-na os sons e os cheiros, a superficialidade cientifica de quem adejava à volta dela, as vozes que a censurariam cansadas nos seus preconceitos. Mas ela não voltaria atrás.
Tinha um destino, como a rosa vermelha que segurava nas mãos, agora que a sua pele murchava e perdia a cor, havia um testemunho de vitalidade a passar a quem lhe herdaria as esperanças.

Chamem-na de velha e suspendam-na por fios, convençam-se que lhe dão um destino melhor do que a morte na vossa militância activa, descubram-lhe um outro fim, acusem-na de tudo, insultem os seus dias com lugares comuns, a vossa experiência é apenas lama onde não tem lugar um reflexo.

E descubram-na todos os dias no lugar que consideram vosso, quando por ela passarem, e no seu rosto reconhecerem algo vosso, algo que perderam, desejem para depois esquecer a mesma vida que ela tem.

Sunday, September 05, 2010

seringa agulha limão

Nós os dois éramos só patéticos, naquele abraço de náufragos, procurando um pedaço de céu para respirar, caídos nos braços um do outro, tendo entre nós um pedaço de terra segura, mas nenhuma vontade em nos soltar.

Seriam 4h da tarde, e pontualmente traziam-te pela mão, como se tivessem medo que te perdesses num daqueles corredores escuros. Atiravam-te para os meus braços sujos, embrulhado num lençol, ficavas a fantasiar comigo, com a tua cabeça atirada contra o meu peito, enquanto eu te procurava no braço uma veia impoluta por onde te injectar.

Preparava-te a dose sem grande alarido, num silêncio conforme de quem já não tinha nada a contar, entredentes ainda tecíamos alguns comentários sobre a última gaja que tínhamos comigo, ou suspeitávamos comer, mas aquilo tudo era apenas um intervalo até à próxima dose.

Podíamos sugerir que não nos víamos, naquele restaurante chique à beira mar... estavas sentado a apenas duas mesas, e por fortuna, o empregado consciencioso tinha-te puxado a cadeira que ficava mesmo em frente de mim. Sentavas-te e com o indicador ajeitavas os óculos que teimosamente insistiam em pender para a ponta do teu nariz, e à tua frente sentava-se quem? Mais uma rapariga, objecto dos teus desejos, loira como não poderia deixar de ser, e que enjoadamente, ia erguendo o copo de vinho branco sugerindo-te por entre sorrisos que preferia estar noutro lado qualquer.

Mas por que diabo eu me fixava em ti? Será porque ainda encontrava alguma coisa que invejar, ou simplesmente, apenas te desejava sorte através do meu olhar glacial, tão frio quanto o vento que soprava lá fora? Ou então mandava à merda todos aqueles momentos e divertia-me a imaginar-te nos meus braços enquanto te erguia de encontro à cruz de madeira impregnada com toda a tua culpa.

Estávamos ambos destinados a perder, mas fazia-mo-lo com estilo e redenção, apregoando a quem nos via que ambos tínhamos ganho nalgum momento das nossas vidas. Serias tu ou seria eu a empurrar-me de encontro à pia, assustando velhas piedosas e profundamente hipócritas, que nos aspergiam com a sua água benta parcimoniosa, deixando em nós um leve cheiro a esgoto e flores mortas.

Seria tudo isso ou não seria nada, seria eu a segurar-te num abraço fraterno, enquanto cuspia para trás de ti uma contagem decrescente da qual não fazias parte. Eu sou a prazo, eu sou a prazo, sou um produto perene destinado a desaparecer, e tu ali, com a faca a pender sobre o teu coração e a prometer-te morte, bendita ignorância que faz os teus dias longos e as noites leves, será que ainda sonhas que a vais ter por entre os teus braços, a caminho de Aveiro, a caminho de um porto onde o teu destino está marcado, a caminho de uma cabine que só tem espaço para um.

Vamos enganando o tempo, e porque não, vamos alterando os dias, como quem altera aquilo que vai comer ao jantar. As decisões estão tomadas mas não há nada que impeça que nos abracemos aquela tarde, vamos fumar o ópio e rir de quem passeia, vamos lamber as nossas feridas infectadas e prometer que nunca iremos cair de onde estamos.

E chegada a hora vamos regressar ao ponto de onde partimos, para ver o sol decair no horizonte e partir, deixando atrás de si menos um dia sem saber se chegaremos a ver um novo ocaso.

E o nosso destino está entrelaçado, um pouco como os nossos braços, um pouco como o nosso peito, vamos desaparecer num número, ou numa vertigem, vamos desaparecer porque vivemos. E o que de nós ficar será lançado ao mar, ou incendiado de madrugada antes que alguém desperte do seu sono, não iremos perturbar ninguém dos que aqui ficam, sobretudo aqueles que sentados, em frente ao mar, destilam uma certeza tranquila de que o mundo corre nos seus eixos e engrenagens, e que todas as peças encaixam onde deveriam encaixar para te ter ali, atrás de uma mesa de madeira, entrelaçada numa aliança de platina, regada a vinho verde, e preparada para tomar o lugar que é teu, do outro lado da cama, pelo menos até ao momento em que o despertador dê o sinal e outro dia comece, mais um dia para uns, e para nós, abraçados aqui, menos um dia que resta para a nossa derrota final.