Monday, April 19, 2010

requiem for a dream

n-ost

são partículas suspensas num líquido turvo

preenchem milímetro a milímetro a escala graduada de uma seringa, aspiradas por um êmbolo que ascende em direcção ao céu

quando o seu movimento se detém e inverte, o espaço é rasgado por uma curva líquida que se perde no tapete de damasco, as últimas bolhas de ar desaparecem dando tempo a que o garrote envolva o braço e adormeça a mão

a cefálica desperta sob duas palmadas vigorosas

e de repente é penetrada pela estéril agulha perfurada

o êmbolo desce e a vida termina

são partículas suspensas num liquido turvo

os impulsos do nosso cérebro também não são muito diferentes, igualmente suspensos num líquido turvo de consciência procuram acender a noite em que mergulhamos com partículas luminosas e faíscas breves que mergulham na neve

esperam por um êmbolo que as aspire e as derrame sobre o sangue, esperam que nos tornemos deuses sobre a nossa vida e decidamos o nosso destino com a mesma facilidade com que escolhemos a ementa para jantar

mas eu já caí
sobre um tapete de damasco vermelho
e não tenho para prometer a mim mesmo mais do que esta noite
não há manhã sobre a qual acordar amanhã

há esta seringa, e estas partículas suspensas num líquido turvo e a oportunidade perfeita para fazer um bypass ao futuro e encontrar-lhe o sentido no ponto em que ele acabou

Friday, April 16, 2010

Cabói Inglês

A vulgaridade não está marcada em nós como um sinal.

Surpreende-nos a uma esquina da vida, como uma puta, tresanda a perfume barato e a súor e convida-nos a uma queca rápida entre os lençóis coçados de uma pensão barata.

Não escapamos a esse destino. É o destino que nos coloca uma nota no bolso quando perdemos a mão nessa fundura procurando mais uma desculpa do que um conto de réis. Ou então é o destino que nos desperta da cama e nos faz caminhar a horas em que todos os gatos são pardos. Ou talvez seja ainda o destino a turvar a nossa vista fazendo-nos crer que aquele par de pernas apertadas numa saia minúscula têm muito mais sensualidade do que varizes pulsantes desenhadas como rios em pernas velhas e cansadas de se abrirem ao primeiro que lhes apareça com dinheiro.

A vulgaridade surpreende-nos, saindo da esteira dos nossos próprios passos, saltando ao nosso caminho depois de apoiar uma mão no nosso ombro, fingimo-nos surpreendidos ou até mesmo revoltados, mas raspando o verniz à coisa irrita-nos mais a previsibilidade cénica da coisa do que o seu sucesso.

A vulgaridade escapa como água por entre as palavras e faz com que os nossos passos se entrelacem e que os nossos pés tropecem um no outro enquanto se lhes vai o destino pelo dilúvio abaixo e se remetem como barcaças a suportar a corrente.

A vulgaridade aproxima-nos dos outros enquanto extende as noites até ao limite do possível para depois as preencher com solidão. Lembra-nos que não estamos sozinhos enquanto prolonga e multiplica os dias para que cada um nos lembre do anterior e nos prometa o próximo, prolonga e multiplica as pessoas para que cada uma nos lembre a outra e a outra nos lembre a nós próprios.

A vulgaridade faz desta distância um fosso e preenche-o com oceanos, florestas e dragões mitológicos que cospem fogo com a mesma velocidade com que eu sonho.

O comum é uma benção, faz com que rodemos a vida como quem não pensa na morte, mas só pelos segundos em que penso na morte é que eu sei fazer as pontes que atravessam estes oceanos ou que derrubam estas árvores ou que empalam estes dragões, para depois as perder, para não ser sozinho estando só para não ser querendo ser igual...

a maior ironia da vulgaridade é prometer comunhão na solidão ascética de uma visão superior cuja única pretensão é sonhar contigo

AP

Friday, April 09, 2010

Paranoid Android

Sou como um fantasma a passar no meio deles.
O meu olhar só se crava na sua nuca, mas não se cruza com nenhum outro, perde-se contra as paredes ou contra as luzes de halogéneo que sobressaem do tecto.
Sou como um fantasma porque não pertenço àquele espaço, expulsaram-me pelos sacrifícios que não sei fazer, pelas palavras que deveria ter dito e não disse, ou pela conveniência de quem se pacifica com pouco.
Estou no meio deles e ainda assim estou longe, desloco-me para outro espaço que antes me parecia especial porque era meu, ou porque nele se guardavam velhas relíquias cobertas de pó. Hoje elas vendem-se ou trocam-se no mercado por um punhado de feijões mágicos. Ficou foi por inventar a terra onde, se plantados, cresceriam até ao céu.
Reservam-me para mim, fantasma, um lugar afastado do centro, paradigma da trajectória elíptica e centrífuga que me expulsa deste lugar. No centro deste universo morre o sol e com ele desvanece-se a última réstia de luz e a última centelha de calor. Os planetas ficam pálidos e frios, neles não cresce vida e no entanto perduram na sua órbita fixa por uma rotina que já esqueceu que naqueles mundos já existiu um sol. E quando o sol explode para dar lugar a uma anã branca sinónimo do nível pelo qual se mede toda a qualidade aqui, afasta-me cada vez mais do meu destino negando-me que alguma vez tenha sido o meu, a sua explosão em fogo, sinónimo de morte abre outras portas e outros destinas enquanto inevitavelmente encerra o meu.
E não lhe importa que em mim resida a esperança, ou pelo menos o desejo de acender de novo esta luz. Não lhe importa que em mim haja ainda uma centelha pronta a pegar fogo a uma estepe demasiado ressequida pela indiferença. A esfinge que guarda este mundo há muito que não se move por compaixão ou piedade.
Eu sou uma centelha de vida que arde num interior de um fantasma.
Sou a primavera adiada depois de um inverno tão longo.
E vão retorquir como de costume que me move o desejo, ou o orgulho, ou crença cega numa boa estrela que parece ter ido de vez quando a destinei a velar por alguém num impulso abnegado que mais uma vez se disfarça de desejo.
E dizem que o meu desejo é impossível ou mais uma vez adiado.
Dizem que o meu desejo é como uma bola colorida que embate nos painéis de madeira da roleta que eles fazem girar.
Dizem, ainda, que quer apostando 1 conto de réis ou a vida, é igual, será sempre a sorte a decidir em que casa paro.
Mas não sabem que para mim, ou por ser fantasma ou por ver simplesmente mais longe, a recompensa nunca vai pagar a aposta, e ainda assim a desejo, desejo-a enquanto explode um sol e todos os mundos se queimam... desejo-a enquanto os outros decidem que o sol "já não faz falta brilhar"...

this is what you get
this is what you get
this is what you get
when you mess with us
karma police

Tuesday, April 06, 2010

Lithium

volto-te as costas e contínuo a caminhar. e entre nós deixo cair um véu tecido com convicções. disponho-me à frente de um tribunal de caras conhecidas que atiram questões como gotas de chuva. para todas elas encontro uma resposta, seja ficcionada ou não, seja verdade ou não, seja real ou o seu oposto, sejam mentiras ou verdades o certo é que para cada uma das gotas que caiam existia sempre algo de mim para conter uma resposta

e no topo delas um sorriso cínico que sabia a desespero

são palavras reflectidas num vidro de diamante que escolta uma ampulheta e se dispersam sobre nós como pequenas nuvens brancas incapazes de esconder o sol, existe algures uma terra prometida, mas não é para nós

é todo esse espaço de dor que se estende no tampo de uma mesa e levanta os cantos de muitas folhas velhas espalhadas, e em todas elas um número como uma pessoa que estende os braços empurrando os outros para fora, e para todos eles os dias fazem-se assim em corredores pastel e em cadeiras estreitas, em esperas desesperadas e insignificantes sob o olhar de putas histéricas que os vão revolvendo em lume brando

e em todos eles me posso ver a mim, mas por todos eles não gasto lágrimas, vou gastando o meu sangue comigo e aspergindo gotas em corredores e contra as paredes vou desenhando círculos à sua volta detendo-me um pouco para os acariciar um pouco com o olhar

somos todos feitos da mesma matéria, mas uns servem para servir, e outros servem para mandar, somos todos feitos da mesma matéria mas caminhamos sozinhos e desconfiados de quem está ao lado, temos todos o mesmo rótulo, mas nenhum de nós se importa pelo outro estar na prateleira.

tenho uma consciência que me escorraça aos pontapés por uma viela escura e me faz desembocar nesse corredor para nele tratar um irmão como inimigo, é o ódio que nos separa mais ou menos intenso mas sempre presente é ele que faz as fronteiras entre nós.

não terei de dizer à tua mãe, nem ao teu pai ou à tua avó chorosa que te tirei a vida lutando por algo, pelo menos com isso conseguiria que o seu ódio se voltasse não contra mim mas contra a causa, não, não tenho isso para dizer, tenho para lhes dizer que te tirei o futuro e não o fiz para que alguém tivesse um futuro melhor, mas simplesmente fi-lo por causa de mim.
e do mesmo modo, alguém, que me tira o futuro, fá-lo com a mesma indiferença com que te condeno ao vazio, aqui quem ganha algo ganha apenas aquilo que alguém perdeu, e não há solidariedade para aqueles para quem perder é apenas uma questão de método.

destilo a minha vergonha junto à praia.
agarro-me com ambas as mãos ao meu desejo enquanto caminho sabendo que a cada passo que dou atiro mais alguém para essas ondas sem lhes pedir perdão.
sei que ao meu lado ou por trás de mim há alguém a fazer precisamente o mesmo comigo enquanto eu apenas desejo ter um pouco mais de sorte do que eles.
é aí, enquanto uma onda se desfaz, que me recordo da tua imagem dessa tarde mesmo no momento em que te virei as costas
como te posso convidar para este mundo se eu próprio não consigo viver nele?


mãe, eu não quero crescer...

AP

Friday, April 02, 2010

Drain You