Tuesday, December 14, 2010

Foz

A cor está saturada.
Como uma manhã em branco após uma noite mal dormida.

Ele sentava-se no passeio naquela madrugada fria de Janeiro.

Tinha regressado à pouco, um par de dias talvez.
Desde que regressara os dias tinham perdido a sua rotina feita de horas de trabalho e horas de descanso que compassadamente íam marcando riscas no calendário. O que lhe restava nesta pausa era uma série contínua de tempo que o arrastava de um lugar para outro, de uma hora para a outra, sem marcar definitivamente um ritmo que pudesse chamar de seu.
Comia quando tinha fome, dormia quando tinha sono, e bebia muito, fumava ainda mais, e para cúmulo não lhe restava nenhum lugar para ficar, excepto o abraço convidativo de uma soleira de porta que o resguardasse do orvalho matinal, frio como a morte, cliente habitual das ruas quando se acham desertas.

Esperava encontrar um tecto ali, naquela rua conhecida. É verdade que partira já faz muito, mas na sua ausência, porque é que as coisas ali não se poderiam ter detido na passagem do tempo, oferecendo-lhe um refúgio para onde voltar quando fosse tempo de parar?
Afinal partira porque tudo ali lhe pedia para partir, afinal partira porque o relógio que marcava o tempo naquele lugar soava como uma contagem decrescente, e na ausência de alternativas a estrada parecia-lhe o menor de todos os males. Partira sem ambicionar nada, o único desejo que tinha, deixara-o para trás, como guardião, como eterno desejo que tudo ficasse igual a quando partira, igual não, igual sendo diferente, igual sem uma ampulheta invertida, igual sem um fantasma atrás da porta, igual em todas as cores igual em todos os cheiros, igual em todas as formas.

E agora esse lugar esperava-o como uma coordenada num mapa. Sabia onde o encontrar, mas o que encontrava tinha o sabor acre de o saber tão diferente que voltava para um sítio que já não existia.

Sentado no passeio olhava, com o olhar vazio, um prédio branco em ruínas, a fachada enegrecida por um incêndio recente, e a porta, por ironia, parcialmente arrombada, como que entreaberta convidando-o a entrar.

Já nada daquele sítio o esperava, mas também, já nada nele esperava aquele sítio.
Regressava, como um cão abandonado, por instinto e nada mais, à casa que o vira nascer.