Sunday, July 29, 2007

Inércia

Devolveu-me a chave partida pela manhã.
A culpa não foi minha, disse-me ela, a chave encravou enquanto rodava, quando a tirei, já metade tinha ficado lá dentro, presa no seu interior.
Fitava-a enquanto segurava na mão um canhão novo, pensando insistentemente se em casa teria todas as ferramentas necessárias à substituição. Respirei fundo, aspirando o seu perfume e o aroma do tabaco, porventura alguma feromona encontrava-se misturada naquele bouquet, o certo é que não me conseguia incomodar por tão pouco.
Voltei para casa, com o embrulho, mas insistentemente sozinho. Nem a culpa que ela me queria passar caminhava comigo. Entrei em casa pela porta que tinha deixado aberta, e resolvi entreter-me com um martini antes que a vontade chegasse para me pôr ao trabalho.
Segurava numa das mãos aquele pedaço de metal retorcido ao qual faltava a ponta, pensando como aquela poderia ser uma excelente metáfora se me desse ao trabalho de pensar no seu significado.
O certo é que estava por minutos a substituição, e as poucas cópias das chaves daquele canhão, permaneceriam todas comigo.

Recordas-te quando me ofereceste a chave?- perguntava ela num entardecer junto à janela.
Disse-lhe que sim, que me recordava.
Não sou homem para me emocionar muito com grandes gestos, apesar de deixar fluir o que eu sinto em gestos naturais de continuidade. A chave não caíu de nenhum avião, não apareceu no meio de rosas, nem sequer me dei ao trabalho de lhe preparar um embrulho condizente com tão solene momento. Apareceu naquele momento, porque era preciso que aparecesse.
Como a chave de uma saída de emergência trancada numa discoteca em chamas.
A música pode continuar a ser boa, mas toda a gente parou de dançar, de beber e de engatar para se acotovelar junto à saída... e eu sou apenas o tipo que apareceu com a chave.
Disse-lhe isso, mas seguramente, não era essa a resposta que estava à espera.
Não me surpreendeu, desde o primeiro encontro, em que falávamos de trivialidades numa esplanada em frente a duas bebidas de sabor exótico, tirei logo as medidas ao alcance das tuas palavras.
Naquele diálogo de surdos disse-te o que querias ouvir e não tive remorsos. Afinal tu ditaste as regras e eu aceitei segui-las, para quê fazer grande alarido acerca disso?
Aquela não era a resposta que querias, mas confesso que me cansa o nosso diálogo de surdos em que a única saída possível sería um monólogo infínito com breves apontamentos meus para quebrar a rotina.
Não tenho paciência para ser uma parede no teu jogo de ténis.
Por muito bem que fiques de saia, do alto desse par de pernas fantásticas.
E como não sou homem a espaços, não gosto de me esconder enquanto falas.
Acendo o cigarro que te cravei e fico a ver o néon a acender e a apagar naquela espelunca que fica em frente a minha casa. Atiro a chave para um canto e equaciono se uma noite dormida com a porta aberta será tão má assim.
O sono não me tira de certeza, não sou fã da segurança, com sorte o ladrão que aqui entrar vende-me meio conto de ganza para embalar esta inércia.
Que se foda.
Dou uma última olhada no telemovel, sabendo desde já que se encontra vazio.
Eu sei que não me ligas, não depois do que fizeste.
Acabo o martini e apago o cigarro num cinzeiro improvisado que arrumo na cozinha.
A porta ficou aberta.
Mas nada entrará por lá, excepto os pesadelos.

5 Crossroads:

Blogger Eme said...

tu dás cabo de mim pá.. vinha aqui todos os dis e não havia desabafos e depois num santo dia resolves colocar dois de uma vez e o que me anda a moer neste momemto é que já entrei aqui três vezinhas e continuo a sentir-me na mesma: com os nervos à flor da pele. Pois, que se foda? é apenas uma chave partida, um arrufo com alguém.. e eu neste momento vejo algo que nunca vi em mim: apetece-me partir a cara a alguém que eu sei bem. Até pode ser a que te entregou a chave.. ou a quem tu entregaste, já nem sei!Daaahhh
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Prontos, já estou melhor.
Beijitu

7:44 PM  
Blogger Daniel C. said...

Marta,

Devia escrever uma coisa mais zen, mas para dizer a verdade ainda estava a espumar por ter partido a chave de casa na fechadura no domingo de manhã.
Deu-me para cruzar o episódio com outras memórias trágico-cómicas que tenho e saiu-me isto ;)
Com chá a gente chega ao Nirvana, com chá ou com estaladas! De qualquer modo parece-me bastante mais saudável que partir chaves nos canhões das fechaduras Grrrrr

Bjinho *

11:08 PM  
Anonymous Anonymous said...

Pois bem, não sei de desabafos ou de memórias, mais zen ou mais furiosas, de experiências e episódios teus, não sei se o que leio é autobiográfico ou se apenas puros momentos literários inspirados. Mas é absolutamente extraordinário o resultado. Penso se isto é para ti uma espécie de "terapia"(?!). Se de tanto curares os "males" dos outros, descobriste uma maneira de te curar dos teus, numa partilha de sentimentos e experiências dissimuladamente ingénua e ao mesmo tempo extremamente íntima. Não sei, questiono-me. :)*

10:07 PM  
Blogger Daniel C. said...

Bárbara,

Obrigado pelo elogio! :)

´"Penso se isto é para ti uma espécie de "terapia"(?!). Se de tanto curares os "males" dos outros, descobriste uma maneira de te curar dos teus"(...)
Leste-me extraordinariamente bem...

Tudo o que escrevo parte de coisas que eu vivo. Poder transcrever em palavras o que penso e sinto tem esta magia da intemporalidade. Nestas linhas não existe um tempo condutor como na realidade, por vezes misturo o passado com o presente ou chego a imaginar o futuro transformando-o em passado.
Não é concreto, mas é genuíno.
O resultado tem muito mais da minha própria percepção das coisas do que tem de realidade.
"eu não pinto as coisas como as vejo, mas sim como as imagino" dizia um dos nossos pintores preferidos, eu escrevo um pouco assim... e é como dizes, ingénuo, intímo, terapêutico...
O que escrevo é grande parte de mim, muitas vezes incompreensível até mesmo para mim, mas se por um instante provoquei em quem lê um breve ponto de contacto, um pequeno sentimento, já dou o meu tempo por bem empregue por publicar estes textos.

Bjinho *

12:16 AM  
Anonymous Anonymous said...

Começo a questionar-me se sofremos do mesmo mal? Enfim. Quem pode diagnosticar uma "doença" mental? Não o seremos todos, de uma maneira ou de outra? Anyway, só me resta dizer então que foi um tempo muito bem empregue, o teu e o meu! :)*

1:51 AM  

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