Lithium
volto-te as costas e contínuo a caminhar. e entre nós deixo cair um véu tecido com convicções. disponho-me à frente de um tribunal de caras conhecidas que atiram questões como gotas de chuva. para todas elas encontro uma resposta, seja ficcionada ou não, seja verdade ou não, seja real ou o seu oposto, sejam mentiras ou verdades o certo é que para cada uma das gotas que caiam existia sempre algo de mim para conter uma resposta
e no topo delas um sorriso cínico que sabia a desespero
são palavras reflectidas num vidro de diamante que escolta uma ampulheta e se dispersam sobre nós como pequenas nuvens brancas incapazes de esconder o sol, existe algures uma terra prometida, mas não é para nós
é todo esse espaço de dor que se estende no tampo de uma mesa e levanta os cantos de muitas folhas velhas espalhadas, e em todas elas um número como uma pessoa que estende os braços empurrando os outros para fora, e para todos eles os dias fazem-se assim em corredores pastel e em cadeiras estreitas, em esperas desesperadas e insignificantes sob o olhar de putas histéricas que os vão revolvendo em lume brando
e em todos eles me posso ver a mim, mas por todos eles não gasto lágrimas, vou gastando o meu sangue comigo e aspergindo gotas em corredores e contra as paredes vou desenhando círculos à sua volta detendo-me um pouco para os acariciar um pouco com o olhar
somos todos feitos da mesma matéria, mas uns servem para servir, e outros servem para mandar, somos todos feitos da mesma matéria mas caminhamos sozinhos e desconfiados de quem está ao lado, temos todos o mesmo rótulo, mas nenhum de nós se importa pelo outro estar na prateleira.
tenho uma consciência que me escorraça aos pontapés por uma viela escura e me faz desembocar nesse corredor para nele tratar um irmão como inimigo, é o ódio que nos separa mais ou menos intenso mas sempre presente é ele que faz as fronteiras entre nós.
não terei de dizer à tua mãe, nem ao teu pai ou à tua avó chorosa que te tirei a vida lutando por algo, pelo menos com isso conseguiria que o seu ódio se voltasse não contra mim mas contra a causa, não, não tenho isso para dizer, tenho para lhes dizer que te tirei o futuro e não o fiz para que alguém tivesse um futuro melhor, mas simplesmente fi-lo por causa de mim.
e do mesmo modo, alguém, que me tira o futuro, fá-lo com a mesma indiferença com que te condeno ao vazio, aqui quem ganha algo ganha apenas aquilo que alguém perdeu, e não há solidariedade para aqueles para quem perder é apenas uma questão de método.
destilo a minha vergonha junto à praia.
agarro-me com ambas as mãos ao meu desejo enquanto caminho sabendo que a cada passo que dou atiro mais alguém para essas ondas sem lhes pedir perdão.
sei que ao meu lado ou por trás de mim há alguém a fazer precisamente o mesmo comigo enquanto eu apenas desejo ter um pouco mais de sorte do que eles.
é aí, enquanto uma onda se desfaz, que me recordo da tua imagem dessa tarde mesmo no momento em que te virei as costas
como te posso convidar para este mundo se eu próprio não consigo viver nele?
mãe, eu não quero crescer...
AP
e no topo delas um sorriso cínico que sabia a desespero
são palavras reflectidas num vidro de diamante que escolta uma ampulheta e se dispersam sobre nós como pequenas nuvens brancas incapazes de esconder o sol, existe algures uma terra prometida, mas não é para nós
é todo esse espaço de dor que se estende no tampo de uma mesa e levanta os cantos de muitas folhas velhas espalhadas, e em todas elas um número como uma pessoa que estende os braços empurrando os outros para fora, e para todos eles os dias fazem-se assim em corredores pastel e em cadeiras estreitas, em esperas desesperadas e insignificantes sob o olhar de putas histéricas que os vão revolvendo em lume brando
e em todos eles me posso ver a mim, mas por todos eles não gasto lágrimas, vou gastando o meu sangue comigo e aspergindo gotas em corredores e contra as paredes vou desenhando círculos à sua volta detendo-me um pouco para os acariciar um pouco com o olhar
somos todos feitos da mesma matéria, mas uns servem para servir, e outros servem para mandar, somos todos feitos da mesma matéria mas caminhamos sozinhos e desconfiados de quem está ao lado, temos todos o mesmo rótulo, mas nenhum de nós se importa pelo outro estar na prateleira.
tenho uma consciência que me escorraça aos pontapés por uma viela escura e me faz desembocar nesse corredor para nele tratar um irmão como inimigo, é o ódio que nos separa mais ou menos intenso mas sempre presente é ele que faz as fronteiras entre nós.
não terei de dizer à tua mãe, nem ao teu pai ou à tua avó chorosa que te tirei a vida lutando por algo, pelo menos com isso conseguiria que o seu ódio se voltasse não contra mim mas contra a causa, não, não tenho isso para dizer, tenho para lhes dizer que te tirei o futuro e não o fiz para que alguém tivesse um futuro melhor, mas simplesmente fi-lo por causa de mim.
e do mesmo modo, alguém, que me tira o futuro, fá-lo com a mesma indiferença com que te condeno ao vazio, aqui quem ganha algo ganha apenas aquilo que alguém perdeu, e não há solidariedade para aqueles para quem perder é apenas uma questão de método.
destilo a minha vergonha junto à praia.
agarro-me com ambas as mãos ao meu desejo enquanto caminho sabendo que a cada passo que dou atiro mais alguém para essas ondas sem lhes pedir perdão.
sei que ao meu lado ou por trás de mim há alguém a fazer precisamente o mesmo comigo enquanto eu apenas desejo ter um pouco mais de sorte do que eles.
é aí, enquanto uma onda se desfaz, que me recordo da tua imagem dessa tarde mesmo no momento em que te virei as costas
como te posso convidar para este mundo se eu próprio não consigo viver nele?
mãe, eu não quero crescer...
AP