Sunday, March 18, 2007

As novas ditaduras


Todos temos um papel a desempenhar nas relações com os outros.
O trágico é que parece que esse papel mais do que ir o encontro das nossas expectativas vai de encontro de uma imagem que queremos que os outros valorizem ou apreciem.
Porque desempenhamos um papel?
Simplesmente porque acabamos por construir uma imagem de nós mesmos, que pode ser fiel ou não a nós próprios, mas que procuramos preservar mesmo que as circunstâncias variem.
Por exemplo, construí uma imagem de um gajo que escreve umas cenas literatas, e como tal o que escrevi até aqui foi uma representação desse papel. Consegui em quatro parágrafos definir um problema tão vago que tanto pode explicar a guerra no Iraque como o dilema da compra de um Cd.
Mas não é isso que pretendo, por isso permitam-me que saia um bocadinho do meu papel para ser um pouco mais terra-a-terra.
A nova forma de ditadura surge assim, de uma imagem tão colada a um papel que acaba por definir a nossa relação com os outros e com o mundo.
Será então de bom gosto apreciar uma música pela sua complexidade, ou um livro pelo seu volume ou autor, ou até uma determinada preferência por feijoada ou caviar. Tudo que não encaixe nessa apreciação é depreciado por não se enquadrar com a imagem que pretendemos criar de nós próprios.
Por exemplo, não surpreenderia ninguém que dado o meu historial aparecesse aqui a falar mal do Toy, dos programas e novelas da TVI ou até dos rojões do redanho porque encaixa no papel que todos esperariam que representasse, aliás até seria apreciado por isso, no entanto não o faço. Já se perguntaram porquê?
Provavelmente a vossa primeira resposta seria que um gajo como eu não se interressa por coisas tão mundanas, e estariam errados.
Não o faço porque não me sinto refém do meu papel e porque este tenta ser reprodução fiel do que eu sou. O que por outras palavras quer dizer que se existem coisas diferentes elas não têm de ser, obrigatoriamente, piores ou melhores, são simplesmente diferentes.
Qualquer produção humana partilha valores e\ou sentimentos que são comuns a todos nós, e que todos nós procuramos. Há quem procure esses valores e sentimentos num sucesso do Tony Carreira, e encontre lá as palavras exactas para definir por exemplo o amor que sente, eu não os consegui encontrar lá, mas tenho a mesmíssima sensação quando escuto o Love Buzz dos Nirvana ou o Every You Every Me dos Placebo. Quem é que está certo? Ninguém!
O mesmo se passa em todos os aspectos da nossa vida. Todos procuramos os mesmos sentimentos ou os mesmos valores, porque somos todos humanos e todos os temos, apenas variando os sítios onde os encontramos. Por exemplo haverá escritor mais universal que o Hemingway? Talvez 70% de quem o lê consegue ver lá reflectido coisas que fazem todo o sentido, mas eu não sou capaz, por isso não me dou ao trabalho de ler. No entanto quando leio Sepúlveda encontro as mesmas noções de Justiça, Luta, Adversidade apesar de estarem escritas por outras palavras. Há no entanto pessoas que vão ler Hemingway por ser o tal escritor universal, e fazer excelentes críticas apenas por este ser um autor reputadíssimo mesmo que no essencial não consigam encontrar lá esse prazer da comunhão com o autor. Fazem-no porque até parece mal dizer que não gostou porque estão tão subvertidas ao papel de Intelectual, que falar contra seria um acto aberrante. Percebem a nova ditadura dos papéis?
Antes que me acusem de relativismo deixem-me sublinhar uma outra realidade. Há sentimentos e valores bons e maus, e como tal, há quem procure de acordo com essa escala produtos diferentes. Não haverá, espero eu, grandes dúvidas se eu aqui afirmar que a verdade, a justiça, o altruísmo são valores bons, enquanto a inveja, o voyeurismo e as perversões são valores maus.
Como humanos, estes valores coexistem mais ou menos pacificamente dentro de nós, mas procuramos encontrá-los nos outros com a ilusão de que não estamos sozinhos neste mundo e com o intuito de os estimular.
Não surpreende portanto a difusão na net de pornografia infantil porque existe gente com maus valores que a procure. Agora que, espero eu, estejam todos com o mesmo sentimento de repulsa que eu tenho neste momento por falar nesta realidade, vou reduzir um bocadinho o tamanho da afronta e falar num fenómeno mais massificado, mas ainda assim preocupante.
A recente catadupa de programas como o Big Brother, Quinta das Celebridades e o mais recente a Bela e o Mestre não parece, segundo esta perspectiva, uma crescente procura por produtos que invocam e fazem ressoar em nós valores e sentimentos com o voyeurismo, a perversão, a violência, a invasão da privacidade entre outros que são considerados unanimente como maus?
Preocupante não acham?
E já agora, por este blog fazer um ano neste mês, permitam-me dar a minha opinião sobre o que aqui se escreve:

O conteúdo deste blog é ficcional, o que não impede de se basear em impressões do meu dia a dia. Não existe uma linha temporal como habitualmente a concebemos entre posts porque a única medida de tempo aqui é pessoal, muitas vezes escrevo coisas que nunca se passaram, ou que se passaram hoje, ou que passaram há meses ou anos atrás ou à frente. E não me preocupam os grandes temas universais mas sim o seu limiar, aquela ténue linha que limita os grandes chavões como o amor ou a liberdade, geralmente escrevo sobre alienação, (des)esperança, (des)ilusões, luta, (in)constância, situações limite, representação, culpa e tolerância. E aquilo que eu peço, é que se apropriem de cada linha e cada palavra, que os incorporem como vossos desde que faça vibrar uma das vossas cordas de humanidade, quero lá saber se o que vocês sentem ou valorizam não tem nada a ver com o que escrevi, este espaço é em primeiro lugar meu e depois vosso. Se consegui algum dia fazer vibrar essa corda já dou por bem empregue por ser este um sítio público. E podem mandar-me à merda se foi esse o sentimento que vos provoquei. Como disse ainda há pouco estamos todos aqui à procura de um pedaço de humanidade que nos faça sentir um pouco menos sozinhos.


Texto inspirado num excelente Blog que leio frequentemente com grande prazer, que podem encontrar aqui... ou aí do lado direito.


E já agora tenho diversos amigos que ouvem Tony Carreira, vêem o Big Brother, nunca leram um livro na vida que não tivesse imagens e que não deixam de ser por isso grandes amigos e grandes pessoas!

7 Crossroads:

Blogger Different said...

Hemingway pode ser bom. Experimenta Moveable Feast. podes não gostar da sua faceta machista e alcoólica, mas o homem não é assim tão mau.
"mesmo que no essencial não consigam encontrar lá esse prazer da comunhão com o autor" - ou és tu que não consegues comungar com o autor??? A mim, isso acontece-me com Aquilino Ribeiro ou Alçada Baptista. E se te dissesse que Sepúlveda me dá pesadelos. Estou, pela enésima vez, a recomeçar "Encontro de amor num país em guerra" e, desta vez, sem pesadelos. Até ver. Compreendo a tua revolta e a aparente resignação. E no meio das minhas leituras pelos teus posts arranjei um título para o teu livro: "Desencontros de amor num país em paz aparente". (plagiado do sepúlveda, mas não deixa de ser um título interessante). Agora mais a sério, somos todos muito prepotentes quando damos a nossa opinião sem inguém a ter pedido, quando pensamos que a literatura que temos à cabeçeira é a melhor, quando a música que ouvimos é que é cool, quando no essencial, seja ele Nirvana ou Toy, todos procuramos prazer. Tenho de arranjar tempo para um post sobre o prazer...

9:30 PM  
Blogger Daniel C. said...

Obrigado pela dica, tenho mesmo que me convencer a experimentar apesar do meu passado traumático com o homem.
E de facto tens razão, foi má formulação da frase, sou eu que não consigo conectar com o autor não lhe queria tirar mérito.
Muito curioso Sepúlveda dar-te pesadelos! Experimenta o "Nome de Toureiro" ou o "O velho que lia romances de amor" são mais levezitos que o "encontro..." e sobretudo o primeiro tem um toque de humor spicy que pelo menos a mim me arrancou umas gargalhadas.

Eheh, gostei do título, é de facto bastante resolutivo do que por aqui escrevo, confesso que caio por vezes no romance de cordel. Se algum dia me propor a tal coisa, editado pois claro pela Arlequim, prometo considerar a proposta ;)

Acho que captas-te muito bem a essência do post, ficarei à espera da tua visão do "prazer" como sempre acutilante :D

11:25 PM  
Blogger LA said...

Tás mesmo passado com o bloguex!! Aquilo é um tasquito, não te iludas muito!
O melhor que li do Hemingway foi O Velho E O Mar, é bem bom e pareceu-me um livro para toda a gente.
Também gostei do Paris É Uma Festa, onde ele conta os tempos de juventude em Paris, com o amigo Fitzgerald, etc. Eu gostei do gajo, mas já li há muito, que se calhar tem livros fracos, não me admirava nada. Acho que li mais qualquer coisa dele que já não me lembro, o Fiesta, ou algo assim!

2:12 AM  
Blogger Different said...

a tradução para português de "moveable feast" é mesmo "paris é uma festa". :)

9:24 AM  
Blogger Alien David Sousa said...

"Porque desempenhamos um papel?
Simplesmente porque acabamos por construir uma imagem de nós mesmos, que pode ser fiel ou não a nós próprios, mas que procuramos preservar mesmo que as circunstâncias variem."


Daniel, eu vou ser muito simples no meu comentário.
Dividindo o que tenho para dizer em duas partes

A)Ninguém consegue manter uma imagem eternamente ao mesmo tempo para toda a gente. É impossível. O verdadeiro "Eu" acaba sempre por vir ao de cima.
Se o caso não se dá , essa pessoa perde a sua sanidade mental e acaba num hospital.


B) Quando te referes ao Blog. Compreendo o que dizes. Aqui no teu blog tu podes criar a imagem que te apetecer e manter essa imagem durante o tempo que quiseres, porque essa imagem tem um tempo limitado. Isto é: crias a imagem que desejas, escreves de acordo com a imagem que criastes e quando o teu texto está pronto, fechas o blog e voltas a ser o Daniel. Não a personagem do Blog.
Digo-te isto porque o mesmo se passa comigo no meu Blog. Ou achas mesmo que sou uma Alien? ;)


"Como humanos, estes valores coexistem mais ou menos pacificamente dentro de nós, mas procuramos encontrá-los nos outros com a ilusão de que não estamos sozinhos neste mundo e com o intuito de os estimular."

Concordo...mas acho que foges um pouco ao tema inicial. De certa forma colocaste uma quantidade de ingredientes numa "batedeira" para chegares a uma conclusão.

Não é que não concorde, não concordo é com a ligação. Porque os miudos que estão nos CHATS não criam uma IMAGEM para mais tarde serem vilolados, entendes?
Entendes a confusão?


E depois voltas a falar do blog, da imagem que criamos:

"O conteúdo deste blog é ficcional, o que não impede de se basear em impressões do meu dia a dia. Não existe uma linha temporal como habitualmente a concebemos"

Com o qual eu concordo.


Enfim, como te disse.
Ninguém consegue manter uma imagem "na vida real" SEMPRE!
Nos blogs, sim é possível.

Saudações alienígenas

8:49 PM  
Blogger Daniel C. said...

Bom comentário :)

Em relação ao ponto A:

Também concordo que as pessoas não conseguem esconder a sua verdadeira face por muito tempo, por isso uma das vertentes deste post quis falar sobre os sacrifícios que se fazem em favor desse papel, como ler um autor, falar bem de um filme ou de uma música apenas porque diz bem coonnosco, mesmo que não gostemos particularmente. Tipo Marcelo RS a apresentar 30 livros, dos quais metade deles não leu, mas que lhe dão aquele ar de intelectual que ele procura fortalecer.

B) Não és?! Afinal... afinal... we are all alone?! buáááááá!!! ;)


e de resto tens razão, este post está mt longo pq inclui imensos temas, começou a ser acerca da ditadura dos papéis, mas mais para o final apeteceu-me falar sobre o que aqui escrevo e sobre o relativismo que parecia vir ao de cima pela minha posição anterior.

Enfim, a minha imagem e o meu papel, autolimitados a este blog, como tu muito bem apontas-te são como eu: bipolares e contraditórios! tanto que me ponho a escrever e já não sei bem o que é que saiu :P

Bj terráqueo

8:35 PM  
Blogger Alien David Sousa said...

Olá Daniel, sim percebo quando dizes que muito boa gente é capaz de sacrificar os seus "gostos" para "parecer" o que não é. Ou porque está na moda gostar de determinado autor...ou porque se quer inserir num determindado grupo. Mas continuo a achar que manter essa fachada por muito tempo, para toda a gente é impossível.

E LOL para o Marcelo.

Sim, tu divagas um pouco, e é preciso ler os teus textos mais do que uma vez. Mas eu não me importo porque gosto do que tu escreves! :D

Beijinhos

8:36 PM  

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