Saturday, March 03, 2007

Respect


Nos últimos dias uma sucessão de eventos tem-me levado a reflectir sobre as relações humanas.
Há algo que se perdeu ultimamente, e não me interessam falar aqui das causas, mas sim do resultado. Esse algo poderia chamar-lhe respeito se bem que o termo, da forma como é habitualmente utilizado, não é particularmente feliz.
Acredito que o ser humano se tornou um bem transacionável. Como qualquer bem que exista em abundância a sua utilização generaliza-se e define-se tendo em conta o utilizador.
Esta coisificação do ser humano é das maiores perversões dos tempos modernos. E como não é minha intenção fazer desta análise um prontuário asséptico de consulta rápida, resolvi partilhar um pouco do meu caminho particular.
Existem certas pessoas, no meu ambiente de todos os dias, que recorrem a mim como se de uma ferramenta se tratasse, destinado a atingir um propósito final, um propósito pessoal, mais ou menos dissimulado, mas que não deixa de ser o que é: um propósito.
Sou então, não eu, mas sim alguém que se dispõe para conforto, uso, ou ambição.
Recorda-me dos filmes de série B que passam por aí. Face à mais improvável tragédia (um tsunami ou um meteorito gigante) no pequeno grupo de heróis que salva o planeta costuma existir uma criança pequena mais o seu golden retriever com o ar mais fofo do mundo. Não sei se já repararam mas nos momentos de maior tensão emocional o pirralho costuma afagar o cão com mais vigor. Se já repararam deviam pensar que se o faz não é por se preocupar com o conforto do animal, mas sim porque projecta nele todo o seu medo, e afagá-lo é apenas um meio de subconscientemente confortar a sua angústia com algo físico.
Por vezes, sinto que o cão sou eu.
Como não se pode esperar que abane a cauda ou lamba o interlocutor, a dinâmica que utilizam comigo é um bocadíto mais subtil. Genericamente consiste em aplicar um estimulo cuja previsibilidade de resultado irá agradar a quem emite o estimulo. Isso acontece constantemente, por exemplo aquela amiga que me diz que as últimas experiências a tornaram uma pessoa mais interessante, esperando a inevitável pergunta de quais foram essas experiências.
Como não sou uma pessoa decente faço uma de duas coisas. Ou alinho na manipulação subconsciente, o que levanta a questão do domínio, ou seja, qual o resultado final da manipulação já que me parece que as pessoas já não fazem isto por terem uma agenda mas sim por gostarem de "fazer festas ao cão". Ou então, mais frequentemente, não alinho na manipulação e passo por doente mental.
A segunda opção resulta dos meus 23 anitos de alta rotação a viver intensamente o que me aparecia à frente. As pessoas ganham assim uma espécie de transaparência que fazem de mim uma espécie rara antisocial.
Rebobinando, falta o respeito. As relações mais importantes desses 23 anos não foram muitas mas resultaram desse respeito, da compreensão que existia outra pessoa do outro lado, com interesses e expectativas próprias que não podem ser manipuladas. Deste modo, só me compreendi a mim e aos outros nessas relações porque existia liberdade. Uma liberdade desprovida de julgamento, de coerção, repleta de altruísmo e de uma fronteira específica. Eu posso ver-te voar, posso adorar esse voo, mas na primeira vez que tocar nessas asas será o dia em que cairás no chão arrastando-me contigo. Liberto que estava da obrigação de agradar quer a mim, quer ao outro, provei esse doce sabor que é fazer algo porque se quer, não porque faz falta. Cada acção, cada movimento e palavra torna-se tão natural como respirar, não precisa de ser filtrado, reduzido ou manipulado é tão só entregar o melhor de mim porque quero fazê-lo a outra pessoa, sabendo que não vou ser julgado mas sim apreciado pelo que sou, pelo que dei.
Ter relações assim é extraordinariamente difícil. É preciso confiar, acreditar quase cegamente no outro. É preciso despersonalizar, se o outro faz algo diferente do que nós faríamos não significa que esteja errado simplesmente significa que é diferente. É preciso ser honesto na entrega, sem objectivo para além da entrega em si. É preciso ser intenso, dar tudo em cada momento, sem consequência ou arrependimento.
Das poucas relações que estabeleci assim muito poucas se quebraram. Quando se quebraram deixaram em mim marcas profundas de dor e culpa. Se falharam falharam por não cumprirem um desses objectivos. A mais recente falhou por não ser homem que chegue para ser intenso porque me sentia julgado, por não respeitar a liberdade, a individualidade do outro, por personalizar cada movimento e deste modo, inconscientemente, julgar.
Trato, como tal, um punhado de gente como amigos. Entre eles estão grandes pessoas, que me acompanham à anos, e por isso me sinto afortunado.
Com os outros, os conhecidos, jogo esse jogo de xadrez inconsciente de utilidade mútua. É extremamente perverso e errado, mas o estranho é que toda a gente joga assumindo ou não as regras. E não vou ser eu que vou responder se é melhor ser aquele que manipula, ou aquele que consciententemente é manipulado.
Como não há "respeito" ou seja, como quem manipula não compreende ou quer compreender que do outro lado existe um ser autónomo, o manipulado é apenas algo que se usa para conforto próprio. No melhor dos casos existirá a satisfação mútua em que o próprio manipulado, consciente do facto, se deixa conduzir por gostar do propósito final, quantos conhecimentos na disco terminam na cama deste modo?
Aliás, se extrapolarmos da nossa realidade humana e formos até à esfera profissional, a realidade é que esse tipo de relações se baseiam na base do desrespeito. A empresa manipula o funcionário porque dele quer obter um resultado liquido que nem sempre se traduz na caixa (daí a subtileza), o funcionário aceita ser manipulado porque o propósito final para ele se traduz num ordenado... percebem a perversidade das coisas?
Quando fui confrontado pela primeira vez com isto, ainda sem o saber definir, senti uma ligeira (nhé) sensação de desconforto, quase como uma espécie de desconforto moral. Alas, mesmo eu cresço e percebi que tinha duas opções: ou corria na roda e me davam o queijo ou preferia brincar com novelos de lã. Como sou um rato de esgoto mal mandado deram-me umas palmadinhas nas costas... Pelo menos sorri, o que deve ser uma das vantagens de crescer...

Uma última palavra para 2 amigos meus, dos quais me lembrei enquanto escrevia este post. Eles são, graças a um profundo conhecimento da natureza humana, o verdadeiro estudo de caso do que aqui foi escrito. Digamos que o xadrez com eles é jogado em quatro tabuleiros, em simultâneo e que o cão neste caso não sabe se lhe vão atirar com um osso ou espancálo apenas porque apareceu (literalmente)...

P.S. a todos os que conseguirem ler até aqui, desculpem que o post foi longo, apliquem o que aqui foi escrito às vossas relações... declino qualquer responsabilidade legal por surpresas desagradáveis.

5 Crossroads:

Blogger Roger said...

Agora está na moda os Blogs passarem a livros, acho que o teu começa a pedir isso. Só nao me parece que eles aceitem textos com tanta qualidade, vais ter de trabalhar nisso.
abraço amigo

11:53 AM  
Blogger astolfo said...

que extraordinária análise meu caro...so posso concordar com o roger, já há mto q este tipo de reflexões merece um outro tipo de suporte, e raismaparta se vou desta para melhor sem te ver escrevinhar um livro :p

De resto, aquela compreensão de quem parece tb ja se ter apercebido do jogo, mas q nem sp sabe joga-lo. digamos q se vai entranhando, como tudo q nos impõem nesta sociedade de papel. valem no fundo essas tais relaçoes respeituosas tao dificeis de q falas...ah e mais uma coisa, não é pelo facto de teres compreendido as regras q devas considerar um rato de esgoto. qto mais um hamsterzito q aprendeu a dar umas ferradelas...

gd abxo, keep on going

4:33 PM  
Blogger Daniel C. said...

Ora aqui estão 2 desses caríssimos amigos de quem eu falava a testemunhar as minhas palavras!
looool, no book, o blog já dá trabalho que chegue, mas obrigado por puxarem o lustro :P
Nhé, vamos todos afagar o cão, não é boa politica ser bipolar como eu, as pessoas desconfiam, têm medo... eheh, pergunta aí a uma conterrânea tua Astolfo... é doença mental!

Gd abxo

2:02 AM  
Blogger Alien David Sousa said...

Daniel,antes de mais; sim cheguei até ao fim, mas isso deve-se a ti. Não tem nada a ver com a paciência ou falta dela para ler textos longos, mas sim com o simples facto de que quando eles estão bem escritos e são interessantes, são lidos.

A tua análise está muito bem construida. E identifiquei-me com mais do que possas imaginar.

"Cada acção, cada movimento e palavra torna-se tão natural como respirar, não precisa de ser filtrado, reduzido ou manipulado é tão só entregar o melhor de mim porque quero fazê-lo a outra pessoa, sabendo que não vou ser julgado mas sim apreciado pelo que sou, pelo que dei."

É aquela simples divisão entre os verdadeiros amigos e os amigos por conveniência. E como o mencionaste, todos nós os temos e SIM, todos nós jogamos esse jogo. Umas vezes como mais ou menos paciência mas entramos no jogo.

Eu cansei-me. Porque para ser "usada" já não o tolero como o fazia. E para "usar", aquela porra do carácter não me deixa.

Claro que estou a entrar em contradição. Porque mencionei que todos o jogávamos.
E sim, de certa forma o fazemos. Nem que seja no local de trabalho. Quando estamos sem paciência. E nos vêm com essas conversas do " adivinha lá"... e para não perder tempo: "ok, diz lá então!"
É mais por aí quando digo que no fundo todos o jogamos, porque quando se trata de filtrarmos as pessoas que realmente queremos ter por perto. Aí o caso muda de figura. Com essas eu não jogo! Essas são sagradas. São aquelas que sabem quem eu sou de verdade.

São aquelas que basta um olhar para perceberem o que se passa comigo. E não!, isto não é conversa da treta. Eu tenho, poucas, pessoas destas na minha vida.
Pessoas que conseguem extrair de mim um sorriso quando eu estou na maior merda. Que sabem o que dizer quando todas as outras não fazem a mínima ideia de como chegar a mim em determinada situação.

Com estas pessoas eu não jogo nunca. Perder uma delas. Era perder um pedaço de mim e ficar à deriva.


Bem este comentário, está a ficar mais longo do que o teu texto!;)

Adorei a tua reflexão.
Beijo alienígena

6:03 PM  
Blogger Daniel C. said...

E não é que o meu caminho já tem uma pegada deixada por alguém de outro mundo?! :)

Antes de mais, obrigado pela visita e um obrigado ainda maior pelo comentário!

Acho que atingiste o cerne, a melhor prova de afecto que podemos ter por essas poucas pessoas da nossa vida, é a nossa verdade e a nossa intensidade.
Todos nós jogamos, é verdade, mas existe uma prova da decência que ambos partilhamos contida no que tu escreveste:

"É mais por aí quando digo que no fundo todos o jogamos, porque quando se trata de filtrarmos as pessoas que realmente queremos ter por perto. Aí o caso muda de figura. Com essas eu não jogo! Essas são sagradas. São aquelas que sabem quem eu sou de verdade."

Saber que existem amigos e conhecidos que mesmo merecendo o mesmo respeito não precisam de ter a mesma parte de nós.
Infelizmente existem também aqueles para os quais o jogo é uma constante relacional, fazendo do engano e da manipulação os instrumentos com que lidam por igual com todas as pessoas.
É que é realmente difícil estabelecer relações como a que eu descrevi.
E talvez seja mesmo necessário vir de outro planeta para ainda nos admirarmos com isto ;)


Adorei o teu comentário,
Beijo terráqueo!

Dc

7:45 PM  

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