Transparências
Ela saíu à rua.
Seria perto da meia-noite, aquela hora maldita onde se mata o dia que passou com a ansiedade perversa por um novo dia.
Pouca gente se via àquela hora. Aquele era um bairro decente, daqueles onde a prostituição ocorre dentro de portas e os putos escondem as pedras e as mortalhas no estojo da escola. Um ou outro chefe de família passeava o jeco ao final do dia, com a mesma cara mortificada com que vai trabalhar no dia seguinte, as esposas esperam dentro de casa tricotando a pasmaceira da vida ao ritmo das novelas da noite. Se lhe der na cabeça ainda vai perguntar a uma dessas donas de casa, se sabe quem é a Lola...
Ela foi sempre assim, desgarrada. O alter ego de muitos dos que passam por aí como pessoas de bem. Chamar-se-ia de liberdade, se a própria mãe não lhe chamasse libertina.
Era meia noite, e pelo que via, os homens não se detinham a olhar para o seu peito enquanto ela avançava entretidos que estavam com o obrar dos cães. Mesmo quando ela passava por eles não intuía que eles a seguiam com o olhar para apreciar dissimulados aquele traseiro bem definido que lhes lembraria talvez a mulher em melhores dias.
Isso sim era estranho.
Continuou aquele caminho que conhecia dos dias. A noite tinha sempre aquela magia de retirar a sombra às coisas para elas parecerem apenas fachada. Na parte mais movimentada daquela cidade apareciam os costumados pedintes. Vencidos pela ineficácia dos dias acomodavam-se nas cabines dos multibancos que a sociedade de consumo preparou para eles por um rebate romântico de consciência. Mas nem estes, com a esperança animada de uma última tentativa diária, lhe lançavam o olhar como uma passadeira estendida até à mão onde deveria depositar os trocos que lhe sobrassem nos bolsos.
Entretanto vislumbrou ao longe um rapaz, e nem deus sabe das razões que levavam aquele tipo a perder-se naquela noite em particular. Não tinha cão, pela idade ainda devia ser estudante pelo que o dinheiro não abundaria para ir às putas, caminhava tão lentamente e desconexadamente que não parecia ter um destino em mente. De repenteu pareceu-lhe que de lá ao longe lhe tinha enviado um olhar escrutinador como que a avaliá-la dos pés à cabeça. Não aquele tipo de avaliação de probabilidades de a levar para a cama, à qual já estava habituada, mas sim um outro tipo ao qual ela não estava familiarizada. Um olhar daqueles que se faz quando nos apercebemos de movimento pelo canto do olho e quando vamos a olhar com olhos de ver nos apercebemos que, de facto, não existia nada a ver.
Pela primeira vez olhou para si. Apesar de bonita (quantos o haviam já afirmado?) saiu de casa como fazia na maior parte dos dias, sem qualquer preocupação com a roupa que lhe cobriria a nudez, ou com a maquilhagem e acessórios que haveriam de combinar com os seus bonitos olhos azuis, o seu cabelo cobre, ou a merda dos sapatos. Não a surpreendeu que um top verde sobressaísse entre um casaco negro, encimando umas calças de gangas coçadas que teria há pelo menos 5 anos. Seria talvez essa dissonância cromática que chamaria a atenção daquele rapaz ali ao longe.
Voltou a olhar em frente, o rapaz, ainda que mais próximo, parecia absorto a contar os paralelos do chão e não parecia estabelecer o mais leve contacto com ela. Pensou em desviar-se, mas que se foda, isso é o que ela fazia durante o dia, desviar-se das conveniências alheias para abrir espaço ao sucesso rápido dos outros, agora era noite, e a noite tem destas maravilhas e destas magias. Desta vez não se iria desviar.
Eram menos 5 os passos que a distanciavam dele.
E continuava convicta que não se iria desviar, que o iria obrigar a reparar nela, mais não fosse pelo menos através do choque.
E a distância continuava a diminuir.
Um passo apenas.
E o espaço onde ela esperaria encontrar alguém apenas encontrou vazio.
E então deu-se conta, que afinal, a maior magia da noite tinha feito dela... transparências.
Seria perto da meia-noite, aquela hora maldita onde se mata o dia que passou com a ansiedade perversa por um novo dia.
Pouca gente se via àquela hora. Aquele era um bairro decente, daqueles onde a prostituição ocorre dentro de portas e os putos escondem as pedras e as mortalhas no estojo da escola. Um ou outro chefe de família passeava o jeco ao final do dia, com a mesma cara mortificada com que vai trabalhar no dia seguinte, as esposas esperam dentro de casa tricotando a pasmaceira da vida ao ritmo das novelas da noite. Se lhe der na cabeça ainda vai perguntar a uma dessas donas de casa, se sabe quem é a Lola...
Ela foi sempre assim, desgarrada. O alter ego de muitos dos que passam por aí como pessoas de bem. Chamar-se-ia de liberdade, se a própria mãe não lhe chamasse libertina.
Era meia noite, e pelo que via, os homens não se detinham a olhar para o seu peito enquanto ela avançava entretidos que estavam com o obrar dos cães. Mesmo quando ela passava por eles não intuía que eles a seguiam com o olhar para apreciar dissimulados aquele traseiro bem definido que lhes lembraria talvez a mulher em melhores dias.
Isso sim era estranho.
Continuou aquele caminho que conhecia dos dias. A noite tinha sempre aquela magia de retirar a sombra às coisas para elas parecerem apenas fachada. Na parte mais movimentada daquela cidade apareciam os costumados pedintes. Vencidos pela ineficácia dos dias acomodavam-se nas cabines dos multibancos que a sociedade de consumo preparou para eles por um rebate romântico de consciência. Mas nem estes, com a esperança animada de uma última tentativa diária, lhe lançavam o olhar como uma passadeira estendida até à mão onde deveria depositar os trocos que lhe sobrassem nos bolsos.
Entretanto vislumbrou ao longe um rapaz, e nem deus sabe das razões que levavam aquele tipo a perder-se naquela noite em particular. Não tinha cão, pela idade ainda devia ser estudante pelo que o dinheiro não abundaria para ir às putas, caminhava tão lentamente e desconexadamente que não parecia ter um destino em mente. De repenteu pareceu-lhe que de lá ao longe lhe tinha enviado um olhar escrutinador como que a avaliá-la dos pés à cabeça. Não aquele tipo de avaliação de probabilidades de a levar para a cama, à qual já estava habituada, mas sim um outro tipo ao qual ela não estava familiarizada. Um olhar daqueles que se faz quando nos apercebemos de movimento pelo canto do olho e quando vamos a olhar com olhos de ver nos apercebemos que, de facto, não existia nada a ver.
Pela primeira vez olhou para si. Apesar de bonita (quantos o haviam já afirmado?) saiu de casa como fazia na maior parte dos dias, sem qualquer preocupação com a roupa que lhe cobriria a nudez, ou com a maquilhagem e acessórios que haveriam de combinar com os seus bonitos olhos azuis, o seu cabelo cobre, ou a merda dos sapatos. Não a surpreendeu que um top verde sobressaísse entre um casaco negro, encimando umas calças de gangas coçadas que teria há pelo menos 5 anos. Seria talvez essa dissonância cromática que chamaria a atenção daquele rapaz ali ao longe.
Voltou a olhar em frente, o rapaz, ainda que mais próximo, parecia absorto a contar os paralelos do chão e não parecia estabelecer o mais leve contacto com ela. Pensou em desviar-se, mas que se foda, isso é o que ela fazia durante o dia, desviar-se das conveniências alheias para abrir espaço ao sucesso rápido dos outros, agora era noite, e a noite tem destas maravilhas e destas magias. Desta vez não se iria desviar.
Eram menos 5 os passos que a distanciavam dele.
E continuava convicta que não se iria desviar, que o iria obrigar a reparar nela, mais não fosse pelo menos através do choque.
E a distância continuava a diminuir.
Um passo apenas.
E o espaço onde ela esperaria encontrar alguém apenas encontrou vazio.
E então deu-se conta, que afinal, a maior magia da noite tinha feito dela... transparências.