Acto I
Há por estes dias o estertor de um Inverno que parece querer-se prolongar nas noites, para se redimir em dias soalheiros que convidam a uma preguiça bem mediterrânea.
Sabe bem este começo de sol acanhado, que oferece calor sem demasia, condimentado por um vento ainda frio de norte que se apanha nos bons espaços.
Guardei para mim uns raios esta semana, numa estrada poeirenta entre dois penhascos, apertada por uma muralha de outrora. Estava-se bem ali, na indolência, convidava o meu bloco de notas a abrir-se e a caneta a correr célere. Eu próprio estava entre dois espaços. Entre o chão que me agarrava, e o céu que queria alcançar.
É curioso que se um me oferece as regras imutáveis das quais ninguém parece fugir, o outro me oferece uma liberdade extrema de espaço vazio. Vazio não, talvez solitário, pois o vento sentia-o eu em cada centímetro quadrado da minha pele. É talvez este último que queira alcançar cá dentro, pois se sei que o meu corpo se agarra às mesmas regras do chão que o sustenta, talvez ainda existam cá dentro as asas que me permitam voar.
E esperar-se-ia que o chão fosse dessa lonjura impossível de um princípio sem fim, mas mesmo este parece querer contradizer-se em elevações impossíveis ou em muros rectilíneos que ascendem até ao céu.
Calma e levanta os olhos, sente o céu e estende as asas.
Desdobram-se? Agora que a cada pena se liga um elo da corrente do inevitável, da indiferença, da falta de sorte ou da consequência?
Os Ícaros de outrora caíam ao chão por se aproximarem do sol, talvez os de hoje não se levantem por se aproximarem demasiado da terra.
E quando desdobram as asas descobrem que estão cobertas de areia, tão pesadas que nem a elas mesmo se levantam quanto menos um corpo. As suas pontas, outrora apontadas ao céu desafiantes, roçam em demasia o chão desenhando círculos centrados em mim.
O vento ascendente, apenas levanta poeira e tolda a visão, o ar continua a ser demais por preencher um espaço demasiado grande para caber em nós e nos desafiar a percorrê-lo e continua a ser de menos porque lhe falta a espessura para nele apoiar-mos as nossas asas e assim levantar voo.
E assim descubro, na orla de um penhasco encimado por um pedaço de chão a que chamam muralha, que a maior prisão é a falta dela. Cada linha da minha gaiola desenha-se com o azul do céu e acaba na terra como em qualquer horizonte. As minhas asas não se estendem por poeira, por elos e por repousarem humildes apontadas ao chão. O meu voo quebrou não por falta de céu mas por excesso de chão.
Porque quer se queira quer não, há sempre esse pedaço de terra em nós, que já não nos sustenta... mas sim enterra.