11 garrafões de mim...
Hoje acordei ressacado, com o sabor amargo da vingança colado ao céu da boca, por muito esforço que fizesse não conseguia descolar a língua, pronunciar qualquer som.
Descobri que o que me arrasta da cama, pelas manhãs submersas, pelas madrugadas que acordo depois de horas insuficientes de sono, é incomparavelmente mais forte que o mais forte sentimento de vingança que me mova.
Por isso não me levantei à hora certa, não consegui encontrar um ritmo, não conseguia abrir os olhos que permaneciam colados não querendo ver o dia a nascer...
Arrastei-me para o banho onde me demorei mais do que o que devia, vagarosamente escovei os dentes e dei um jeito ao cabelo, olhando como se nunca as tivesse visto para as minhas olheiras, para o meu rosto cansado.
Saí de casa tardíssimo, sem me preocupar muito com o tempo, incomodava-me todo o excesso de ar, todo o excesso de luz e de espaço que me separava do meu objectivo final.
Tomei um café vagaroso, demorando-me a acender um cigarro. O seu sabor acre e forte, mesmo esse, não me conseguiu arrancar nenhum som, não me pacificou, não me soube bem.
Acelerei para lá, pedindo sangue. Por vezes a melhor recompensa que se tem na vingança não é a morte do adversário mas sentir o sabor da sua carne entre os nossos dentes, sobre a nossa lingua, sentir o sabor do sangue ainda quente a escorregar pela nossa garganta humedecida pelo excesso de saliva.
No ar estava aquele cheiro metálico que se eleva dos campos de batalha, aquele silêncio perturbador antes do primeiro grito de guerra. Não fazia nada excepto preparar-me para esse instante perfeito em que cravaria na carne de todos os que me fizeram mal, uma lança afiada, uma lança afiada pelo meu ódio, uma lança vagarosamente esculpida nos dias em que sofria, em que não dava conta da sua passagem entretido que estava a construir esse fio de vida que apenas significava morte. Era uma lança comprida, uma lança comprida pelo tempo, pelo alcance do sentimento, uma lança que de um lado dizia "sucesso", dizendo do outro lado "dor".
Entrei no espaço sabendo ao que ia, avançava destemido com toda a confiança que o meu escudo e o meu pouco medo da morte me davam.
E de súbito não estavam lá.
Não estavam lá.
Não estava lá quem me tinha ferido, não estava lá quem me tinha matado, não estavam lá os assassinos, os perversos, os cretinos, não estavam lá as pessoas, os heróis da mediocridade, os hipócritas, os falsos, os vendidos...
Mas de repente dei conta...
Eu também não estava lá...
Estava um desconhecido armado, desejando sangue e o término das coisas... procurava um ponto final vermelho para uma história trágica, procurava fechar aquele selo no calor da batalha...
O que aquele desconhecido queria era matar-se não era matar.
E como todos os condenados à morte, prolongou os seus últimos momentos em vida...
Agora que o seu algoz faltava à sua própria execução, descobrira, que todo o seu esforço teria sido em vão.
Descobria que se não fosse tão cobarde como temia que fosse, o único destino a dar à lança seria a de a cravar no próprio peito, matando à partida um desconhecido que apenas conhecia o sabor da batalha e que nunca na vida descobriria como viver em paz.
A essas pessoas, desconhecidas, resta uma morte honrosa em batalha com que justificar os seus dias...
Ao próprio, ao conhecido de mim, falta a coragem para partir a lança no peito do desconhecido de mim...
E entre esses dois há esse confronto velado, como dois inimigos frente a frente, tão equilibrados que acordaram tacitamente em não se atacar por não quererem destruir o mundo em que vivem.
O desconhecido virou costas e saiu.
Hoje, pelo menos para ele, não haveria batalha a travar.
Saiu tão contrariado como o conhecido tinha entrado ali.
Saiu respirando rápido e destilando ódio. Há falta de pessoas para matar, esbracejava tentando atingir os seus próprios fantasmas. Passou o resto do dia mal, olhando de soslaio para o conhecido, avaliando a sua própria capacidade para inflingir dor e se esta bastava para acabar de vez com aquele cobarde que não lhe dava um destino merecido.
O conhecido sentou-se a um canto e esperou pela noite chorando, queria ter a capacidade para o libertar daquele destino guerreiro, queria matá-lo. Mas ao contrário do outro, não tinha ocupado os seus dias a esculpir lanças, nem a afiar uma espada que pudesse utilizar agora.
Só havia um destino, matar ou ser morto ali, por todas as batalhas perdidas reclamando vingança seja pela espada ou pela indiferença.
Mas ambos persistem em campos opostos... e na paz armada que se vive, o que sobra é uma intensa revolta que quer desfazer o mundo e quem lá vive.
Pergunto-me se quando decidiste quebrar as tuas próprias tréguas, quando um dos teus lados venceu, porque não aproveitas-te aquele ímpeto para matar um de mim?
Mas agora que penso...
Agora que penso nisso, e não sei se é a verdade, é apenas a minha resposta... não foi esse ímpeto que me dividiu em dois?