Manif
Soube há poucos minutos que houve manifestação no alto tâmega por causa do encerramento ou requalificação das urgências nessa região.
Em primeiro lugar fiquei agradavelmente surpreendido por ver tal manifestação de intervenção cívica numa região que, pela distância geográfica, social e política ao resto do país, sempre assistiu com um certo desprezo e desalento às convulsões da república.
Agora falando verdade, o constante afastamento das funções sociais por parte deste e de outros governos tem um único culpado: o défice. Não me venham cá com histórias de que esta reorganização do SNS passa por medidas de racionalização da oferta existente, porque todos sabemos que ela é escassa, esbanjadora, corporativista e profundamente assimétrica. As medidas politicas que se tomam têm por último propósito o corte da despesa. O único critério seguido tem sido os tais 3% que por ser facilmente quantificável, leva grande vantagem sobre a qualidade e a utilidade das medidas propostas.
Sou flaviense dos quatro costados, nasci e cresci naquela terra, e como Miguel Torga, por muito mundo que veja é naquele pedaço de mundo agreste que eu encontro o meu lar. Já fui atendido naquela urgência, já lá fui operado, naquele Hospital nasceram e morreram pessoas que me foram muito queridas, mas não se enganem, se me coloco de alma e coração ao lado das pessoas que hoje se manifestaram não é só por todas as causas afectivas (que são muitas) mas também por conhecer a realidade dura de quem lá vive.
Não sou um desses especialistas que elaboram relatórios à la carte para ministros conscienciosos decidirem sobre a vida dos seus semelhantes, mas gostaria de lhes dizer que da aldeia de onde vim se demora perto de meia hora a chegar a Chaves isto quando o gelo na estrada é tanto que expande essa meia hora para uma inteira. Queria dizer-lhes que moram menos pessoas lá que na Amadora, em Sintra, em Valongo ou Ermesinde, mas que nem por isso deixam de ser menos pessoas ou menos dignas por isso. Queria dizer-lhes que não sou especialista mas que sei, e que até apostava se o assunto não fosse tão grave, que vão morrer pessoas cujo único pecado e causa de morte foi morarem longe de todos os centros de decisão, tão longe que a sua voz e morte não chegam a ecoar nas galerias da assembleia.
Há aí numa dessas leituras diárias do lado direito, uma que eu estimo particularmente no blog MentAcutilante. Lá se diz a propósito do Carnaval:
"Eu vou-me disfarçar de transmontana com igualdade de oportunidades, qualidade de ensino e acesso à cultura e ao desenvolvimento"
É que por notícias destas, cada vez mais me convenço que este disfarce, mais do que uma sátira, se está a transformar numa irrealidade ainda mais delirante que uma fatiota do lobisomem ou do homem-aranha.
Na notícia que vi, aparecia a dada altura um cartaz onde em letras garrafais se lia "se o norte dá assim tanta despesa, ofereçam-no aos Espanhóis". Aqui d'el Rei, que se trata de divisionismo contra a unidade da pátria, que escândalo já não nos faltava a Madeira agora aparecem os grunhos atrás do Marão a quererem migrar para Espanha. Mais uma vez não sou especialista, mas uma coisa vos digo, quem vive em Chaves vê que Espanha cresce quase 4% ao ano, lá não se criam 150000 postos de trabalho em 4 anos mas 550000 em apenas um, vêem melhor qualidade de vida, melhores salários, carros mais baratos, melhor saúde. E ao contrário dos iluminados que governam este país, ou os portugueses de direito que habitam em Lisboa, não vêem isso na televisão, basta olhar para o lado e a 10 Km de distância aparece o el dorado.
Sou bisneto de contrabandistas, de combatentes pela pátria que mataram alemães em La Lis, nos serões à volta da lareira, ainda me falam do tempo em que íamos a Espanha de noite para comprar chocolates e sabão ao preço da chuva, eu sou do tempo da internet e dos aviões, hoje vou a espanha atestar o depósito de gasolina e olhar com a cara parva e invejosa de um bom Português para a boa vida dos nossos vizinhos. Se tiver azar, enquanto regresso a Chaves, tenho um acidente de automóvel. Sou então um politraumatizado. Como antes de ser politraumatizado sou cidadão de segunda, espero 20 minutos por uma ambulância, mais 20 para chegar ao hospital (Distrital de Chaves, pois claro) para aí decidirem que não, tenho que ir para Vila Real, outra ambulância, mais 45 minutos e chego já cadáver. Pelo que sei e já vi, depois de morto já não importa seres Português, Espanhol ou Belga, parece que isso só importa enquanto estás vivo.
N.A.: a história que contei não é ficcional, há um par de anos atrás um amigo meu morreu nessa estrada que liga Chaves a Espanha. Revolta-me pensar que a esta tragédia pode ser ainda mais terrível se adicionarmos à equação a negação de cuidados de saúde condignas aos meus conterrâneos.
Em primeiro lugar fiquei agradavelmente surpreendido por ver tal manifestação de intervenção cívica numa região que, pela distância geográfica, social e política ao resto do país, sempre assistiu com um certo desprezo e desalento às convulsões da república.
Agora falando verdade, o constante afastamento das funções sociais por parte deste e de outros governos tem um único culpado: o défice. Não me venham cá com histórias de que esta reorganização do SNS passa por medidas de racionalização da oferta existente, porque todos sabemos que ela é escassa, esbanjadora, corporativista e profundamente assimétrica. As medidas politicas que se tomam têm por último propósito o corte da despesa. O único critério seguido tem sido os tais 3% que por ser facilmente quantificável, leva grande vantagem sobre a qualidade e a utilidade das medidas propostas.
Sou flaviense dos quatro costados, nasci e cresci naquela terra, e como Miguel Torga, por muito mundo que veja é naquele pedaço de mundo agreste que eu encontro o meu lar. Já fui atendido naquela urgência, já lá fui operado, naquele Hospital nasceram e morreram pessoas que me foram muito queridas, mas não se enganem, se me coloco de alma e coração ao lado das pessoas que hoje se manifestaram não é só por todas as causas afectivas (que são muitas) mas também por conhecer a realidade dura de quem lá vive.
Não sou um desses especialistas que elaboram relatórios à la carte para ministros conscienciosos decidirem sobre a vida dos seus semelhantes, mas gostaria de lhes dizer que da aldeia de onde vim se demora perto de meia hora a chegar a Chaves isto quando o gelo na estrada é tanto que expande essa meia hora para uma inteira. Queria dizer-lhes que moram menos pessoas lá que na Amadora, em Sintra, em Valongo ou Ermesinde, mas que nem por isso deixam de ser menos pessoas ou menos dignas por isso. Queria dizer-lhes que não sou especialista mas que sei, e que até apostava se o assunto não fosse tão grave, que vão morrer pessoas cujo único pecado e causa de morte foi morarem longe de todos os centros de decisão, tão longe que a sua voz e morte não chegam a ecoar nas galerias da assembleia.
Há aí numa dessas leituras diárias do lado direito, uma que eu estimo particularmente no blog MentAcutilante. Lá se diz a propósito do Carnaval:
"Eu vou-me disfarçar de transmontana com igualdade de oportunidades, qualidade de ensino e acesso à cultura e ao desenvolvimento"
É que por notícias destas, cada vez mais me convenço que este disfarce, mais do que uma sátira, se está a transformar numa irrealidade ainda mais delirante que uma fatiota do lobisomem ou do homem-aranha.
Na notícia que vi, aparecia a dada altura um cartaz onde em letras garrafais se lia "se o norte dá assim tanta despesa, ofereçam-no aos Espanhóis". Aqui d'el Rei, que se trata de divisionismo contra a unidade da pátria, que escândalo já não nos faltava a Madeira agora aparecem os grunhos atrás do Marão a quererem migrar para Espanha. Mais uma vez não sou especialista, mas uma coisa vos digo, quem vive em Chaves vê que Espanha cresce quase 4% ao ano, lá não se criam 150000 postos de trabalho em 4 anos mas 550000 em apenas um, vêem melhor qualidade de vida, melhores salários, carros mais baratos, melhor saúde. E ao contrário dos iluminados que governam este país, ou os portugueses de direito que habitam em Lisboa, não vêem isso na televisão, basta olhar para o lado e a 10 Km de distância aparece o el dorado.
Sou bisneto de contrabandistas, de combatentes pela pátria que mataram alemães em La Lis, nos serões à volta da lareira, ainda me falam do tempo em que íamos a Espanha de noite para comprar chocolates e sabão ao preço da chuva, eu sou do tempo da internet e dos aviões, hoje vou a espanha atestar o depósito de gasolina e olhar com a cara parva e invejosa de um bom Português para a boa vida dos nossos vizinhos. Se tiver azar, enquanto regresso a Chaves, tenho um acidente de automóvel. Sou então um politraumatizado. Como antes de ser politraumatizado sou cidadão de segunda, espero 20 minutos por uma ambulância, mais 20 para chegar ao hospital (Distrital de Chaves, pois claro) para aí decidirem que não, tenho que ir para Vila Real, outra ambulância, mais 45 minutos e chego já cadáver. Pelo que sei e já vi, depois de morto já não importa seres Português, Espanhol ou Belga, parece que isso só importa enquanto estás vivo.
N.A.: a história que contei não é ficcional, há um par de anos atrás um amigo meu morreu nessa estrada que liga Chaves a Espanha. Revolta-me pensar que a esta tragédia pode ser ainda mais terrível se adicionarmos à equação a negação de cuidados de saúde condignas aos meus conterrâneos.
O teu post foi claro, emotivo e acutilante. Parabéns. Infelizmente, é mesmo assim. O mais triste é pensar que muitos dos senhores com poder de decisão têm ascendentes no interior, mas não devem ter ouvido histórias à lareira. Quanto aos amigos, apressaram-se a arranjar lugares com factor C na urbe e, de vez em quando, mascaram-se de rurais e até aparecem de chapéu e botas de 500 Euros. É que há rurais e rurais. Há uns tempos o senhor Primeiro Ministro dizia que as urgências deviam ter dois médicos, dois enfermeiros, um analista e um aparelho de raioX. No hospital em que eu nasci, na década de 80, havia isso tudo e agora já não há nada. Faziam-se operações e partos. Fechou. Há mais de 10 anos que não nasce uma criança. Nascem pelo caminho.
Tristemente vemo-nos despojados das valências de que usufruíamos há vinte anos. Não admito que chamem a isto evolução. As ondas do choque tecnológico parecem esbarrar no Marão.
Mesmo em pequena, nunca tive medo dos médicos ou das operações. Tenho medo das distâncias, das curvas seculares, agora alcatroadas, e do ministro que só aprendeu o verbo fechar.
Muito bom comentário.
Realmente apenas quem passa por elas é que pode verdadeiramente dar um preço real à interioridade, mesmo não sendo especialista.
Parece que não vai haver muito a fazer, o fecho não parece ser discutível mas sim um dado adquirido. Ao menos que não nos deixe indiferentes, contra esta barreira intransponível que parece ser o Marão haja pelo menos a memória viva em pessoas como nós. Já cruzei aquela montanha tantas vezes e em nenhuma delas senti que deixei para trás essa memória independentemente do destino...