Sunday, March 28, 2010

c'est un pari que j'ai du faire dans une autre vie miserable

"meu sonho tem boca
que o digam meus ossos
tem 2 olhos
sobre a nuca
e reza todos os dias
que em todas as horas
houve um tempo
sem mentira"

tropecei naquele comentário como poderia ter tropeçado noutra coisa qualquer, afinal não há nenhum acaso que se separe do final do copo da cerveja para erguer uma esquina qualquer, onde menos esperamos, e onde inevitavelmente vai cair o nosso pé

e então? dizia eu, entre soluços, e então? [censurado] é real!

se fosse gaja ainda podia aproveitar um canto de uma unha de gel para raspar à superfície a sua camada de verniz e expor sob a máscara a verdadeira face do mal.

[censurado] enquanto comia a outra na parte de trás do carro [censurado] ainda lhe restava a coragem para [censurado] talvez por racionalizar que de certa maneira a [censurado] seria um outro caminho para [censurado] ou no final de contas, chegar à conclusão que trair com um corpo ainda consegue ser um pouco menos grave do que trair com uma mente [censurado] mas tais imagens não te vêem à ponta dos dedos [censurado] enquanto escreves num par de linhas a maior mentira de todas: [censurado]

cut
go


sair à rua naquele instante seria como engolir de um trago aquele copo de absinto que tinha pedido num bar foleiro, enquanto brasileiras de má fama iam roçando as coxas que despontavam de saias florescentes excessivamente curtas, pedindo-lhe que lhes pagasse um copo com a mesma violência com que o convidariam para uma cama emprestada na pensão ao lado.
sair à rua era precisamente o inverso daquilo que o tinha feito entrar naquele bar.
mas estranhamente, o consumo mínimo que o letreiro afixado sobre a velha desdentada que guardava aquele antro não lhe dava o direito de passagem para uma outra margem onde a vegetação fosse mais verde, ou tivesse pelo menos uma outra cor com que iludir os seus olhos cansados e lacrimejantes pela alternância entre o cinzento do asfalto e o cinzento das pessoas que se cruzavam com ele.
não, continuava na mesma margem. e nem se debruçando sobre o balcão do bar poderia ver do outro lado um pedaço do rio. e da mesma maneira, o empregado tristonho com o seu avental pontuado a nódoas ou uma daquelas putas importadas, tinham no seu aspecto algo de minimamente redentor que as transformasse num são cristóvão improvisado para nelas cavalgar até à outra margem do rio.

e as ondas sonoras que emanavam de umas colunas igualmente decrépitas apenas transportavam o cheiro a sémen, borracha, alc´´ol e perfume barato,

para ele todas as máscaras tinham caído pelo caminho, e aconchegavam-se aos montes de encontro às esquinas dos prédios empurradas pelo vento e degradadas pela chuva, e ainda assim face à evidência, o mundo continuava a funcionar, como se essa verdade ignorada fosse de certa forma o lubrificante ideal para fazer as relações funcionar

quando saía, portanto, já não via o sorriso, ou as lágrimas comovidas, ou os beijos que os amantes trocavam em esquinas coloridas pelos letreiros de néon das sex-shops...

merda- exclamava ele - devia ter atenção às palavras pequeninas no final dos contractos.

tudo tinha começado 2 anos atrás, quando numa feira qualquer, enquanto procurava um produto contrafeito para o seu telemóvel se tinha detido numa pequena barraca montada mesmo à beira rio
entrara mais pela curiosidade que tinha por ver o que se venderia ali, do que por esperança de que seria precisamente naquele local que encontraria o que procurava, em frente dele estendia-se um tapete encarnado com motivos florais que se encontrava disposto por cima dos seixos que naquele sítio se acumulavam e se prolongava até entrar mesmo dentro de água.
estranhamente, e não saberia dizer com certeza absoluta que se devia à pouca luminosidade da tenda, a água ali parecia-lhe mais negra.
à sua esquerda estava um estranho personagem que parecia aguardar por si já que se levantou como que impulsionado por uma mola mal todo o seu corpo tinha penetrado naquele sítio.
o homem a rondar pelos 50 anos, tinha uma cartola negra que em tudo se assemelhava a uma daquelas que povoa o nosso imaginário como um depósito interminável de pombas e coelhos, acessório indispensável de qualquer mágico que se preze.
de resto apenas se lembrava de uma gravata excessivamente grande e vermelha que parecia ocultar todo o peito do homem e nem sequer deixava entrever a cor da camisa que combinava com o fato escuro e de bom corte do sujeito
já não se recordava das feições dele, mas poderia afirmar com certeza, que se não fosse pela gravata e pela cartola, aquela figura poderia figurar no cardápio de um banco respeitável como uma selecção confortável de um empregado servil e ordinário para checkar o balanço trimestral de uma conta a prazo

o tal homem convidara-o para experimentar, por um preço simbólico de um bilhete que tinha aparecido quase por magia do seu bolso, uma nova imagem de si próprio que combinava a exactidão de um espelho com a ondulação de um reflexo na água.

e porque não, se o bilhete era barato e ainda tinha tempo para ir buscar aquilo que procurava, e de certa forma tinha que confessar que se tinha sentido intrigado pela estranha descrição da experiência?

adquirido o bilhete, que nunca chegou a tocar já que o homem rapidamente lhe rasgou um canto e fez desaparecer o que restava no mesmo bolso de onde o tinha retirado, viu como ele se encaminhou para o lado oposto da tenda para descobrir um espelho rectangular que se encontrava escondido debaixo de um pano que por ter a mesma cor que o interior da tenda o ocultava perfeitamente.

rapidamente o homem, revelando uma força absurda para alguém do seu tamanho, atirou o espelho para a margem do rio com a parte reflectora dirigida ao céu, convidando-o em seguida para olhar para ele.

ele aproximou-se, e em vez de ver, como esperava, o seu próprio reflexo, viu reflectido o tecto da tenda e em segundo plano o próprio leito do rio... quando estendia a mão para tentar descobrir através do tacto o truque atrás daquela ilusão o artista interpôs-se entre ele e o espelho convidando-o para sair. após encolher os ombros saíu dali sem ter a certeza de dar por bem ou por mal empregue aquelas 3 moedas com que tinha comprado o direito a uma experiência no mínimo estranha.

uma semana após aquela experiência começaram os pesadelos, 33 dias depois começara a duvidar da sua própria sanidade ao descobrir que o que via na rua era profundamente diferente daquilo a que os outros viam

o pesadelo era sempre igual
ele estava numa plateia enorme, sempre sozinho e extremamente assustado.
decorriam 7 segundos e de repente todas as luzes se apagavam à excepção de um único foco que se dirigia ao palco.
todas as noites pedaços da sua vida, da sua história, desfilavam uma após a outra em representações em que ele era actor e espectador
e todos os dias tinha que suportar, como se fosse a primeira vez, todas as coisas boas e más que se tinham passado enquanto uma voz off irritantemente monocórdica descrevia os verdadeiros sentimentos e intenções dos protagonistas secundários
noutras noites, apareciam as mesmas cenas, mas com 2 ou 3 pormenores trocados, mas em vez da história se reescrever a história repetia-se ad eternum até à náusea até esses momentos se despirem da sua solenidade única e irrepetível e se transformarem em peças recorrentes e banais e os seus intervenientes caricaturas grotescas que se alimentavam de si próprias e se reproduziam como balões vazios alinhados sob uma luz branca e igualmente vazia.

quando saía à rua, não era melhor.
continuava a projectar as cenas que via no mesmo palco em que habitava todas as noites.
as pessoas eram portanto actores, desempenhando um papel, transformando actos humanos em encenações lineares que ele podia ler inteiramente incluindo as notas acessórias que o cenógrafo tinha deixado à margem do guião principal ilustrando a verdadeira face ou intenção do seu personagem

eram portanto, todos os dias, desfiles intermináveis de actores, monólogos sem fim e coreografias repetidas, pessoas que lhe apareciam sem máscara, desprovidas de talento como as suas palavras se tornavam desprovidas de verdade para se transformarem em lubrificante que tanto serviria para promover o acto em si mesmo como em promover todas as constantes e variadas posições sexuais com que os homens penetravam mulheres ou outros homens ou animais ou outras coisas quaisquer que a imaginação humana, e muito menos a sua, teria sido possível conceber.

e no final já não existia a pergunta de como seria aquilo possível, mas simplesmente a certeza que as coisas apenas poderiam funcionar daquela forma e não haveria seguramente na sua imaginação ou na imaginação de outra pessoa qualquer maior que si mesmo uma outra forma daquilo funcionar.

era precisamente na máscara e dissimulação que residia a pedra angular daquele mundo que ele encontrava quando saía à rua e era ele, simplesmente por saber, que se excluía dele pretendendo inventar um outro.

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