Sunday, March 14, 2010

"pode descer" por Manuel Cruz

estive há dez minutos atrás na varanda do meu quinto andar a observar a cúpula invisível entre o céu e o enorme lego de betão e a sentir-me um inquilino passageiro desta pensão de uma estrela perdida na imensa cidade negra a que damos o nome de universo.

curiosamente parece que é o único sítio que temos para passar a longa noite que nos espera e é aí que eu saio para apanhar a frequência como que a comer um ponto e a cagar um verso, no meu prisma, a encaixar, provavelmente no de outros feito um filósofo de merda.

mas a vida é isso mesmo, um monte de gente a fazer de conta que se entende e ninguém sabe dizer o que viveu e por isso nos pedem que caminhemos alegres para o precipício, sem questionar, porque estaremos sempre longe. mas o longe rapidamente fica perto e perto rapidamente passa por nós. eu não quero mandar-te para baixo, mas eu sei que me entendes, tu também tens medo de morrer, toda a gente tem só que normalmente evocamos nomes de problemas para nos convencermos que estamos ocupados a resolver uma situação importante quando não tem importância nenhuma entretanto o tapete rola e nós irritamo-nos com a inevitabilidade, e nos nossos sonhos dizemos:

"-torna-me imortal! torna-me imortal! eu não vou aguentar deixar de existir!"

e é aí que eu entro para sair da frequência, seduzir-te com os meus sonhos, tu não vês como empreendo? e como eu mais um milhão de sonhadores leva com ele muitos braços de outros, acéfalos, na lotaria dos ideais, descrentes, beijando o número do bilhete. mas quero dizer-te que a viagem é tua, e eu não quero empurrar-te à força para a rua. se eu falhar eu vou passar de deus a carrasco, embalsamado e metido dentro de um frasco, para te lembrares da mentira, mas a verdade é que ganhamos sempre.


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