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"No Tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer."
Álvaro de Campos
Os aniversários comemoravam-se há muito tempo assim, sentado na poltrona do escritório, acendendo a lareira com a madeira que sobrava depois de ter partido uma das últimas cadeiras pesadas que restavam da velha e escura mobília que compunha a sala de jantar da igualmente velha casa senhorial sobrante de um passado distinto, onde nada mais restava do que apenas uma fotografia a sépia com mais de 100 anos, onde um respeitável senhor, de bigode retorcido e postura altiva, compunha uma figura antológica como que para amedrontar as gerações vindouras, incutindo-lhes uma noção de responsabilidade que ia muito para além do apelido com que os dotara no berço.
Acendia um charuto nessa lareira, depois de lhe cortar a ponta com uma faca de abrir cartas feita em prata. Inspirava lenta e repetidamente o fumo, expirando-o depois em fiapos leitosos que iam primeiro rápido, depois lentamente, em direcção à lareira, onde pairavam e se iam enrolando e misturando com o fumo que a lenha exalava para partirem pela chaminé em direcção a um céu já negro pela noite que caía.
Mais um aniversário, e como nos anteriores, depois do charuto fumado e esmagado de encontro a um pesado cinzeiro castanho, mergulharia nas chamas e nas brasas que ainda restassem procurando um renascimento pelo fogo, ou um renascimento qualquer, um renascimento possível, mais possível do que aquele que o tempo eternamente prometia sem concretizar.
E como nos anos anteriores, sentiria como em primeiro lugar o fogo o livraria da roupa com que se escondia do frio e do mundo, envolvendo maternalmente o seu corpo nu, enquanto ele se enrolava na posição fetal com que tinha passado aqueles 9 meses longe da consciência e entregue ao universo, em sintonia com as poucas cordas da harpa que ao tocadas, inventavam todo o futuro, passado e presente quer da matéria física quer da metafísica.
Em segundo lugar, seria a pele que se transformaria em cinza e se depositaria no fundo da lareira, sem se distinguir em nenhum ponto da outra cinza que a madeira de carvalho encerada tinha deixado momentos antes no mesmo lugar.
E por último, seria todo o seu corpo a desaparecer por entre as chamas que ajudava a criar... sonhava e aproximava-se cada vez mais desse objectivo... mas como em qualquer aniversário, chegava sempre o tempo em que a aniversariante chegava para soprar sobre a chama que se erguia das velas formulando um desejo. Depois da chama apagada, a convidada ia desenhar um sorriso brilhante, comemorando mais um ano, arrancando as velas do bolo, cortando-o para depois o servir com uma taça de champanhe aos seus amigos.
E aquele aniversário sem excepção, confirmaria que à última da hora, quando o corpo em chamas abandonaria por um momento a inevitabilidade dos aniversários para pensar que seria naquele ano que por fim a chama iria chegar ao fim e reduzir o tempo a cinzas, a convidada chegaria, e soprando levemente sobre ele, apagaria a chama e com ela a última vontade da matéria em se transformar em cinza, deixando sobre a lareira apenas e só, um corpo humano terrivelmente queimado.
Where is my mind?
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer."
Álvaro de Campos
Os aniversários comemoravam-se há muito tempo assim, sentado na poltrona do escritório, acendendo a lareira com a madeira que sobrava depois de ter partido uma das últimas cadeiras pesadas que restavam da velha e escura mobília que compunha a sala de jantar da igualmente velha casa senhorial sobrante de um passado distinto, onde nada mais restava do que apenas uma fotografia a sépia com mais de 100 anos, onde um respeitável senhor, de bigode retorcido e postura altiva, compunha uma figura antológica como que para amedrontar as gerações vindouras, incutindo-lhes uma noção de responsabilidade que ia muito para além do apelido com que os dotara no berço.
Acendia um charuto nessa lareira, depois de lhe cortar a ponta com uma faca de abrir cartas feita em prata. Inspirava lenta e repetidamente o fumo, expirando-o depois em fiapos leitosos que iam primeiro rápido, depois lentamente, em direcção à lareira, onde pairavam e se iam enrolando e misturando com o fumo que a lenha exalava para partirem pela chaminé em direcção a um céu já negro pela noite que caía.
Mais um aniversário, e como nos anteriores, depois do charuto fumado e esmagado de encontro a um pesado cinzeiro castanho, mergulharia nas chamas e nas brasas que ainda restassem procurando um renascimento pelo fogo, ou um renascimento qualquer, um renascimento possível, mais possível do que aquele que o tempo eternamente prometia sem concretizar.
E como nos anos anteriores, sentiria como em primeiro lugar o fogo o livraria da roupa com que se escondia do frio e do mundo, envolvendo maternalmente o seu corpo nu, enquanto ele se enrolava na posição fetal com que tinha passado aqueles 9 meses longe da consciência e entregue ao universo, em sintonia com as poucas cordas da harpa que ao tocadas, inventavam todo o futuro, passado e presente quer da matéria física quer da metafísica.
Em segundo lugar, seria a pele que se transformaria em cinza e se depositaria no fundo da lareira, sem se distinguir em nenhum ponto da outra cinza que a madeira de carvalho encerada tinha deixado momentos antes no mesmo lugar.
E por último, seria todo o seu corpo a desaparecer por entre as chamas que ajudava a criar... sonhava e aproximava-se cada vez mais desse objectivo... mas como em qualquer aniversário, chegava sempre o tempo em que a aniversariante chegava para soprar sobre a chama que se erguia das velas formulando um desejo. Depois da chama apagada, a convidada ia desenhar um sorriso brilhante, comemorando mais um ano, arrancando as velas do bolo, cortando-o para depois o servir com uma taça de champanhe aos seus amigos.
E aquele aniversário sem excepção, confirmaria que à última da hora, quando o corpo em chamas abandonaria por um momento a inevitabilidade dos aniversários para pensar que seria naquele ano que por fim a chama iria chegar ao fim e reduzir o tempo a cinzas, a convidada chegaria, e soprando levemente sobre ele, apagaria a chama e com ela a última vontade da matéria em se transformar em cinza, deixando sobre a lareira apenas e só, um corpo humano terrivelmente queimado.
Where is my mind?
I hope that still at the same place :)
abraço