Saturday, February 02, 2008

Pós-Modernos.

Sinto-me velho.
E não o digo por me pesarem os dias, ou as pernas, ou qualquer outra parte de mim que se arrasta no tempo.
Digo-o porque no dia de hoje ainda me estranho com a intemporalidade das coisas.

Lembro-me de uma vez, há já muito tempo atrás, ler numa aula um conto qualquer de Eça de Queiroz. Estabelecia-se um paralelismo com uma frase batida de um pensador que eu só li um par de anos depois de ter lido aquele conto. Esse pensador, Nietzsche, dizia que aquilo que não contas ao teu maior amigo, contas com maior facilidade a um estranho numa estalagem. Isto para dizer que provavelmente só saindo dessa imagem que criamos para quem queremos que goste de nós é que podemos falar dos segredos mais profundos...
Mas voltando ao nosso bem mais português Eça, contava ele sobre certa figura escorreita, de olhar digno e pose certa, metido dentro de um fato barato mas digno, barbeado na perfeição, que se deliciava com um cálice de Porto após uma regrada refeição, sobre este, insisto eu, tudo se falava, ou indicava, uma rectidão moral à prova de bala, um carácter granítico, um homem de honra portanto. E sobre ele caíria uma tragédia como que provando o seu carácter, para ver se a sua vontade cederia perante as várias tentações da carne... acho eu... que a esta hora a memória já não é certa quanto a factos ou argumentos. Se a história não for assim que me perdoem o erro, mas se a reinvento aqui, é tão só para provar a afirmação de que estou velho, ou pelo menos ultrapassado, e que pouco valor tenho excepto para uma qualquer colecção de museu perdido, destinado a visitas de estudo ou turistas nipónicos.

Sou, um pouco, do tempo dessas histórias de rectidão e honra. Não viesse eu de um lugar onde por uns palmos de terra ou umas quantas palavras mal medidas, se retirassem vidas humanas à frente de uma caçadeira de duplo cano e chumbo grosso.
Sou desse tempo em que as pessoas, mesmo aquelas que faziam parte do imaginário popular como as mais desafortunadas ou dignas de escárnio, eram insubstituíveis por serem únicas, por trazerem à vida colectiva uma nota particular que fazia do conjunto algo de muito mais harmonioso e regrado. Um pouco como uma paróquia de aldeia, onde tão insubstituível seria o pároco bonacheirão que colectava pela páscoa as dúzias de ovos com as quais mataria a fome às governantas e afilhados, como o doidivanas que se abrigava à noite no palheiro dos ricos, e que durante o dia mendigava uma côdea de pão enquanto assustava as crianças.
Sou desse tempo, dos apertos de mão e dos homens sérios, de bigode e camisas de linho branquinhas coradas à beira do rio... bem... talvez não seja tão velho assim... mas pelo menos sou do tempo em que as pessoas importavam, ou pelo menos valiam qualquer coisa, e eram estimadas por isso, onde seguramente, após um esforço grande teriam uma recompensa consentânea.
Custa-me ser mais deste tempo, onde as coisas são complicadas. Porque se o esforço ainda se faz à luz do dia, e todos vêem, os interesses jogam-se nas sombras, e são sempre esses a decidirem o resultado final das contendas.
Já não chega mostrar para se ter, já não há palavras como sacríficio, ou honra, ou entrega, quando cinicamente se esconde, ou jogam cartas, consoante os interesses profundos, perversos, ou mesmo animalescos dos grandes deste país.
E no final de tanto cinismo, a simplicidade paga-se caro, paga-se em lágrimas outra vez derramadas à luz, para todos verem, por entre os abraços hipócritas de todos aqueles que jogaram nas sombras para os resultados serem tão reais quanto aquelas lágrimas que aparam num ombro que nada tem de amigo.
Estamos todos vendidos, porque temos nas nossas curtas vidas, demasiadas coisas a perder, e cedo percebemos que quem ganhou ganhou o que alguém perdeu.

E eu estou velho para perceber estas coisas, e não sei ver para além do que a luz me mostra...

Sou um dos poucos ombros que recebe as tuas lágrimas sem nada ter feito para as provocar. E tu sabes disso. E por isso me procuras de noite, na hora em que tu sabes que eu saio do sítio que é teu... por ser mais teu do que daqueles todos que ficam.
E esperas por mim, sabendo que eu sou o último... e sou igual a ti... vou perder o que tu também perdeste, e na consolação da perda resta-nos o ombro mútuo e aquele abraço que trocamos quando as luzes se apagaram e me disseste "eu tenho medo" e eu não soube dizer, porque tenho honra e não te minto, que em mim não tenho forças que cheguem para te proteger.


Dedicado muito especialmente à Rute.

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