Flatline
Saí do jantar à noite e pensei que já há muito tempo que não via um céu tão estrelado como aquele.
Era tão só um jantar de trabalho, daqueles que se fazem para agradar as chefias com a ideia de que o cimento que une a equipa é um pouco mais do que as convivências normais de trabalho e que trancende este para se substanciar lá fora.
Não sou amigo da maioria daqueles tipos, com as suas gravatas impecáveis e os seus dentes brancos polidos. Arrogantes e confiantes ao volante do carro que a empresa pagou para eles, confiantes nas suas palavras, passando por aí altivos arrastando consigo um odor familiar a um perfume caro.
Não me apetece agradar-lhes e nem por isso me apeteceu vestir uma gravata mesmo para aquele jantar social.
Sai do jantar já farto de falar das suas conquistas e das suas proezas.
Cansei-me de os ouvir desfiar as suas conquistas, sejam de gajas, carros ou clientes por entre garfadas de um bacalhau com broa demasiado salgado para o meu gosto.
Achei particularmente irritante o sujeito nervoso que chefia o departamento. Um tipo de palavras caras e bom gosto que encarrilou a vida depois do seu master em gestão. Contava ele, a pretexto de uma qualquer bugiganga que trazia como adorno, de como tinha levado a sua namorada a um país qualquer da américa do sul.
Não me interessava particularmente isso. Não por um sentimento qualquer de inveja, mas por um simples sentimento de tédio que me davam todas essas histórias de felicidade alheia promovida a estatuto social.
Saí à rua e já nem sequer pensava em todas aquelas palavras que eram ditas, em todas aquelas histórias e sorrisos.
Pensava como o céu tinha estrelas e cantarolei uma qualquer canção que me falava disso, já sem saber muito bem quem a cantou.
Já no parque de estacionamento, um lugar ermo e mal iluminado, deixei-me ficar para o fim, e esperei que aquele ventinho que se levantava de norte, não se transformasse numa saraivada de facas afiadas que mal permitiam manter os meus olhos abertos.
Muito depois do último carro ter partido, saí do carro para mais um cigarro saboreado ainda com o travo do café e os olhos pregados no céu.
À minha frente apareceste-me tu, arrepiada no meio do teu casaco de penas que te fazia um pouco mais gorda.
Ficas-te a olhar para mim à distância de um metro e todo o teu corpo tremia pedindo um pouco do calor do meu. Seria por vergonha ou um pudor muito próprio, mas a única coisa que me pediste foi um cigarro do meu maço que acendeste com o prazer muito próprio de alguém que não sente um sabor assim desde muito tempo atrás.
Começaste a falar de ti, como se eu não te conhecesse de lado algum. E de novo me relembraste de todas as pequenas coisas que te marcaram a pele como se a ponta desse cigarro que seguravas na ponta dos teus dedos finos se encostasse à tua pele por cada desvio do caminho que tomavas em algum ponto da tua vida.
E sem qualquer sobressalto, porque a preparação era desnecessária, passaste ao que realmente interessava:
-mas então... e tu que contas... o que tens feito?
-nada em especial, trabalho ocasionalmente e mascaro-me de risos que tornem mais suportável o meu dia àqueles que se atravessam à frente. Ocasionalmente fodo e continuo a fumar um cigarro depois como bem sabes. Ocasionalmente compro qualquer coisa para casa e perco uma tarde inteira a pensar como vou reorganizar as coisas de maneira a encaixá-la lá. De vez em quando cozinho um prato especial, acendo uma vela e abro um bom vinho tinto que deixo respirar 15 minutos antes de o servir numa mesa posta para 1... de vez em quando...
-chega.
-Já te chegou?
-sim.
-mas não tinhas perguntado porque querias saber?
-sim, mas como sempre fazes falas demais... não me interessa como passas os teus dias... quero saber o que se passa contigo.
-mas eu só sei falar do que faço, o que queres que fale, queres que fale de mim?
-quero que fales de tudo o que importa...
-e se eu não tiver nada que importe?
-dá-me mais um cigarro para o caminho e deixa que me despeça de ti assim... se quiseres continuar o jantar tens amanhã, ou o dia seguinte, mas esta noite és meu e eu mereço mais do que isso...
- mas eu para ti... já não tenho palavras...
- então... porque é que as usas?
Uma trovoada ouviu-se ao longe e ao som do primeiro trovão, apagaram-se as poucas luzes que ainda suportavam a atmosfera daquele parque. Depois tudo se fundiu na noite como os nossos corpos se fundiram um no outro.
Recordo vagamente um abraço, e várias lágrimas gordas que lhe molharam as costas. Instintivamente as minhas mãos souberam procurar o seu corpo e souberam coisas que por palavras seriam inexprimíveis.
Enquanto lhe tirava a roupa vagarosamente, despia-me a mim mesmo da carapaça dura com que me revestira ao longo daquele deserto.
Quando a penetrei, rompi com qualquer coisa em mim e percebi desde logo que não a queria reparar.
Quando tivemos um orgasmo comecei pela primeira vez a sentir.
E depois abracei-a encostando o meu peito às suas costas envolvendo-a por trás sem perceber onde terminava o meu corpo e começava o dela, ficamos a ouvir a chuva a cair enquanto adormeciamos devagarinho.
Nenhuma palavra foi dita.
Nem para dizer adeus, quando no dia seguinte ela teve que partir.
Estás em forma! Enquanto continuares assim não estás mal, só tens que te livrar dessa cambada!