Wednesday, May 23, 2007

Meme

A autora deste excelente blog, que tenho com orgulho na minha lista de leituras diárias, desafiou-me para escrever um meme.
Honra lhe seja feita, o certo é que o meme que ela escreveu resultou num texto delicioso que me fez voltar aos meus tempos de infância.
Não sei se me atrevo a tanto, mas o certo é que este desafio proporcionou-me um mergulho muito interessante nos meus próprios paraísos naturais, coisa que desde já aproveito para agradecer. Não sei igualmente se estarei à altura mas aqui vai:


Paraísos naturais.

Nasci há 23 anos, nesse extremo do mundo que chamaram atrás dos montes.
Antes de saber ler já me tinha apaixonado por um paraíso muito particular. Ao contrário do geral, o meu paraíso estava encerrado em muros de granito. Se lhe faltavam anjos e harpas, abundavam o silvedo e as gestas. Se o maná não me caía do céu nascia-me certo no topo da figueira que escalava e sabiam-me a mel os figos que lá colhia requentados pelo sol.
Depois de saber ler quiseram-me encantar com contos tradicionais, não daqueles que contam os irmãos Grimm mas aqueles que me sabiam a granito e a seiva por serem tão nossos. Mais tarde quiseram-me encantar com Miguel Torga, esse enorme homem e escritor cuja única coisa que o excedeu em vida foi a terra que o viu nascer.
Mas nada disso me bastou.
Na terra dos meus antepassados, certo lugarejo perdido nos montes que mesmo nos tempos mais áureos não excedeu a centena de habitantes, há certa casa em ruínas que eu esvaziei do que valia com as minhas próprias mãos. É certamente uma casa rude feita de enormes blocos de granito e pranchas de carvalho. O seu parco recheio, pelo contrário, de rude nada tinha. Um dos meus antepassados, homem habilidoso com as madeiras, esculpiu cada móvel com as mãos, e cada um, melhor do que o outro, carrega um empenho muito próprio em embelezar e curvar as linhas de um mundo que de todo se completa em arestas.
Decerto particularidades desse homem, rude como a terra que o viu nascer, com a 4ª classe, mas que, como poucos, possuía um espírito livre como o céu que parece tão longe aqui, como eu não vi em mais nenhum sítio.
Voltava ele de Chaves, pela tardinha, encontra já próximo da povoação um seu vizinho, que sabendo-o pai de gémeos pouco tempo atrás intuiu a razão da sua viagem:
-olá vizinho, vem de registar os raparigos?
-sim vizinho.
-atão que nome lhes botou?
-bem, ia eu descendo a corga, o sol estava a nascer com aquela aurora, e eu só me lembrava da luz do senhor jesus cristo nosso perpétuo socorro, e vai daí a mais moça vai-se chamar de Perpétua.

E foi assim que tenho uma avó chamada Perpétua. Do rapaz, seu gémeo falso, não vale a pena dizer seu nome por respeito aos mortos, no Inverno a seguir ao nascimento de ambos, pelo frio que aqui abunda ou pelos agasalhos na altura escassos, adoeceram os dois a tal ponto que o Paizinho, perdendo a fé que lhe restava da inútil visita ao médico, encomenda os caixões e entrando com eles em casa, apenas acha um corpo para lá pôr, pois a Perpétua, fazendo jus à inspiração do seu nome, arrebitou e ainda por cá anda, oxalá por muitos anos.
Muito antes de haver Perpétua, o Paizinho andou pela Flandres a matar alemães em nome duma pátria que nesse tempo, como hoje, se revela ingrata e distante. Companheiro foi do Milhões, certo soldado afamado, do qual se conta que fez razia entre as linhas inimigas, agachado atrás de um animal morto agarrado à sua metralhadora ganhando com isso a morte e uma medalha.
Sobre ele dizia o Paizinho aos serões, que o que lhe sobrava não era coragem mas sim falta de inteligência, pois enquanto os companheiros retiravam face à esmagadora superioridade adversária, ficou lá ele a distribuir metralha.
Ele teve mais sorte, depois de disparar a sua conta de balas, foi feito prisioneiro pelos Alemães. Da frente da batalha foi transferido para Bruxelas e daí, abreviando etapas, para a Polónia. Quase um ano volvido sobre o fim da I grande guerra, conseguiu passagem para Helsínquia, e dali para Lisboa, fazendo-se passar por Italiano, pois já perdera esperanças (e não valia a pena mesmo tê-las) que o governo Português se dignasse a pagar o seu resgate e regresso.
No campo de prisioneiros Polaco, escapou à fome e à pestilência, graças não a mantimentos portugueses mas sim à sua habilidade como carpinteiro. Certo abastado homem Polaco, querendo fazer umas portas carrais para a sua casa e na falta de homens válidos, desloca-se ao campo para requisitar alguém. Ficou o Paizinho, e tanta mestria mostrou que lá ficou quase até ao final da guerra, fazendo móveis para esse homem, e matando a fome na sua despensa.
Um dos que fez cá, carreguei-o eu, com as minhas mãos. Curioso como sou, abri uma das suas gavetas, que já não era aberta aos anos, para lá encontrar duas ampolas onde se lia num autocolante amarelecido "Padutina-Depósito 40 U. Biol." e "Dissolvente de Padutina" ambas da Bayer. Depois de misturadas, destinavam-se a ser injectadas não pela mão de uma enfermeira, mas sim de uma senhora que, frustrado o seu sonho de estudar para ser uma verdadeira enfermeira, aprendia por tentativa e erro nas vítimas que lhe apareciam, e que não eram assim tão poucas, pois o hospital mais perto distava quase 30 km e não havia paciência para lá ir e voltar todos os dias.
A propósito essa senhora chama-se Perpétua.
Vários anos passaram e um descendente desses indivíduos anda por cá a aprender em livros o que os outros aprenderam fazendo, ou repetindo os passos que os outros fizeram em guerra, e que agora os deu em paz, para aprender a dar vida em cardiologia e cuidados intensivos. Será que eles sonhavam com isso?
E porque no meu corpo também corre sangue minhoto, recordo-me da primeira vez que comi papas de sarrabulho debaixo de uma latada. A minha avó estava presente, que a deusa a tenha, com um coração tão grande (tão grande que até lhe falhou) a acolher-nos a todos no seu regaço. Foi aí que eu vi pela primeira vez o milagre da multiplicação. E não foi de pão, porque há fomes piores que a do pão e eu que já vivi ambas o sei, mas sim de amor. Vi como ela dividia o que tinha entre todos e este nunca ficou menor, e que a memória não me falhe quando digo que não vi nenhum de nós reclamar por ter um pedaço menor.
Paraíso natural.
Há-os de várias formas talvez.
Como os marcos de granito que marcam as extremas do corgo. Para quem não conhece, dirá que aquilo tudo é mato. Eu vejo rastos de javalis pelo meio e sei onde ficam os carvalhos e aquela rocha que parece um ventre prenho.
E carrego-o dentro de mim.
E não carrego só um, carrego todo um mundo de paraísos e sonhos dos que já ficaram e dos que ainda estão por vir.
E não me preocupa passá-los, porque quando morrer, eles vão voltar para o sítio de onde vieram.
Se me encantam estas paisagens agrestes, este granito, esta poeira e estes rios, é porque me vejo neles, e sei que um dia também eu farei parte deste mundo. Porque por mais mundo que veja apenas a isto eu sei chamar lar.
Como outros atrás de mim.
E eu carrego os seus sonhos, como blocos de granito, ou os seus paraísos como rios onde outros saciam a sede.
É este o meu paraíso, e para mim é natural.


"Avistei minha querida terra
Quando cheguei ao barracão
E me alembrou que ia para a guérra
Como ficou meu coração

Que lhe estava dizendo adeus
Se cálha para nunca mais
E já contava de ir para à guérra
E sem me espedir de meus pais

Deixar pái e mãe e mânos
Tôda a familia a chorár
E assim partir para a guérra
Para morrêr ou matar

Digote adeus térra querida se te não
Tórno a ver infeliz sorte será a minha
Mas se te tórno a ver
Chorarei de alegria"

Excerto do livro "Recordações da Grande Guerra" escrito por António dos Santos Pereira, meu Bisavô nascido no lugar da Amoinha Nova, freguesia de S. Thiago de Alhariz.


P.S.- Tudo o que aqui foi escrito é verídico. Subverti intencionalmente o conceito de meme, o que transmito são ideias veiculadas através de um texto da minha autoria.


Passo o meme (aka batata quente) para:

Astolfo
Roger
Morgaine

8 Crossroads:

Blogger Different said...

Simplesmente arrebatador! Um meme memorável:)

10:22 AM  
Blogger Daniel C. said...

Different,

Obrigado pelo elogio.
Mas para ser sincero, eu é que tenho tudo a agradecer-te pela oportunidade que me deste para revisitar os meus paraísos.
Apenas soube fazer o melhor que pude.
E o meu ponto de partida foi o teu "texto delicioso", que fica aqui guardado junto aos meus paraísos ;)

Bjinho

5:34 PM  
Anonymous Anonymous said...

Muito fixe! A ver se bebemos um copo em tras do torgo, ou pelo menos, no Porto, no Piolho, ou noutro!
luis bloguex

10:40 PM  
Anonymous Anonymous said...

Dani! Adorei. Levei dois dias a ler hehe mas adorei. Estás de parabéns pela escrita perfeita, pela narração incrível dos acontecimentos que nos embarca numa viagem ao passado durante toda a leitura. Perfect! :)
Quanto a propores o desafio a moi... vens um bocadito tarde.. não sei se já reparaste que o citdel passou à história.. enfim, estou por aqui na mesma para te ler sempre.Mas aquela ida a Oz ehpahh.. percebemos a importância de certas coisas entendes? e falta-me tempo!
Beijo doce
M. aka Morgaine

10:36 PM  
Blogger nelio said...

daniel, está muito bom. soubesse todo este país preservar a memória desta maneira, ter este orgulho nas suas origens.

um abraço

12:24 PM  
Blogger Daniel C. said...

Luis,

Não tenho costela barrosã mas ando lá perto ;)
Obrigado pelo elogio!
Não me queres convidar antes para um vinho dos mortos? Esse é que valia a pena!
Abraço


Morgaine,

Obrigado pelo fucking fabolous elogio :)
Agora que já descobriste Oz, não me queres dispensar o mapa?
Nevermind eu continuo a ser um idiota à procura de um coelho
Perdi uma leitura diária mas é daquelas que se perde com o prazer de saber a autora fazer com o seu tempo algo de muito melhor! Nunca batas com os calcanhares 3 vezes, não pises fora da estrada dourada, que o citadel seja o último porto desse barco ou dessa viagem que todos deviamos fazer ;)

Bjinho para a Marta


Nelio,

:)
Eu não dou assim tão bom exemplo, porque se toda a minha vida me senti transmontano, foram raras as vezes que me senti Português!
Abraço

11:28 PM  
Anonymous Anonymous said...

Vinho em trás do torgo é mesmo isso, é vinho dos mortos em Boticas. Em agosto devo estar lá, é só uma questão de combinação! Se não puderes, fins de Julho no Porto.
luis

11:54 PM  
Blogger astolfo said...

é impressionante o teu talento. e o tamanho dessa alma transmontana. obgd pelo desafio, mas ainda preciso de crescer mais um pco... um bocadinho assim |--->| :)

abxo

10:36 PM  

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