dizia-lhe ele
...e aquele vidro reflectia toda a sua fome.
É a decadência, dizia-lhe ele mascando uma pastilha elástica de morango, ela está lá nas espirais de aço e nos pilares de cimento, dizia-lhe ele batendo o pé compassadamente no chão, ela está lá à tua espera no sítio do costume.
E o que ele via da sua janela era apenas um tapete verde e uma árvore despida.
É o pecado, dizia-lhe ele olhando o céu à procura de um deus impossível, é o que encontras nessa cadeira de plástico e na chávena de café, dizia-lhe ele com sombras nos seus olhos, é um pecado essa contemplação e qualquer tipo de desejo o teu corpo está sujo.
E despido no banho encostava a cabeça à parede deixando a água morna escorrer pelas suas costas, o seu olhar fixo no ralo via essa cor púrpura do seu sangue misturar-se com a água e escorrer por aquele cano como a sua vida escorria nas ruas daquela cidade.
É o ócio, dizia-lhe ele folheando o jornal, o ócio pariu todas as desvirtudes, dizia-lhe ele lambendo o dedo para melhor folhear o jornal, é o ócio o veneno dos cosmopolitas que lhes vai trazer a ruína.
E detinha-se no computador, cigarro atrás de cigarro, perante um cursor que piscava e que lhe indicava que mais um segundo tinha passado e que tinha menos um segundo para viver.
É a corrupção moral que grassa, dizia-lhe ele encostado a um muro, vendemos os nossos valores no mercado, dizia-lhe ele enquanto puxava de um lenço e arrancava um sonoro e verde escarro de dentro do peito, e com o dinheiro que nos pagaram construímos centros comerciais e esplanadas.
E atirava as beatas que lhe sobravam para o outro lado do quarto fazendo pontaria a um copo de martini vazio que conservava rançoso um quarto de uma fatia de limão, um após outro, um atrás do outro.
Já esqueceram o passado, dizia-lhe ele apressando o passo, enterraram-no como a coisa velha que era na areia do tempo, dizia-lhe ele tropeçando, já esqueceram o que lhes ensinou e condenam-se assim a repetir os mesmos erros.
E regava as plantas regularmente, comia a horas certas e fodia ocasionalmente, comprou um carro, um serviço de pratos e dois pares de gravatas, não perdia uma novela, pagava os impostos e o seu dealer consciencioso nunca o enganou numa dose.
É o final da nossa raça, dizia-lhe ele cambaleando, daqui a 1 ano ninguém se lembrará de nós, dizia-lhe ele cuspindo sangue, é o nosso final...
E lambeu a mortalha daquele paiva, tirando a bala que tinha guardado no bolso.
Encontraram os dois no dia a seguir.
fucking brilliant my friend
fogoo... acabei de ver um filme! Já agora podiam ter-se deitado logo nos caixões para não darem trabalho a outros de ir limpar os cacos da sua cobardia..
Grande Roger,
Gracias pelo comentário, confesso que já tinha saudades, mas é difícil atingir os requisitos minimos ;)
Gd abxo
Morgaine,
Ser cobarde é um privilégio!
E eles gostam de dar trabalho mesmo depois de mortos...
Bjinho