Monday, May 28, 2007

Cronófago


"(...) o corpo quente, tornou-me o sangue frio (...)"

Quando o tempo pára falo com bustos de pedra.
Quando o tempo pára faço rodar uma bola de cristal na mão.
Quando o tempo pára acendo uma fogueira com as minhas próprias memórias onde deixo requentar num caldeirão o teu doce veneno.
Sabe-me melhor assim do que frio.
Quando o tempo pára finjo que o mundo me entra em polegadas, e martelam-me a cabeça constantemente enquanto é dia.
Quando o tempo pára encho-me de drogas e saio à rua para as vender às criancinhas.
Mas que culpa tiveram elas nesta história, mas por deus, que alguém nos salve dos loucos deste mundo e preserve o seu futuro, onde estão as mães, as mães conscienciosas a rezarem terços conscienciosos, ajoelhadas sobre os seus joelhos pisados, ajoelhadas sobre a madeira envernizada, onde estão os pais que trabalham ao sol, onde estão os pais e os seus ordenados, onde estão eles com os seus carros, onde estão.
Quando o tempo pára, eu saio à rua com 2 facas na mão.
Quando o tempo pára, eu saio à rua e deixo o coração em casa.
Mas meu deus, o desencanto, quem lhes tirou os sonhos e a esperança, quem lhes disse que o futuro não vai ser melhor, quem os encarcerou entre arranha-céus e lhes deu televisões por cabo, telemóveis, plasmas e cigarros, quem lhes vende as drogas e lhes trafica os pecados, quem faz deles criminosos?
Quando o tempo pára, há as horas de ponta.
Quando me vendem futuros, como casas rurais pedindo restauro, levam a sua comissão em sonhos e o presente em bocados.
Quando o tempo pára, quem me leva esta dor?
Peço para ser são e rodeiam-me de loucura, de bastos processos de indiferença, de despudores preconceituosos, porque são pretos, porque são gays, porque são brancos, europeus e decadentes, porque são americanos em armaduras e cavalos brancos.
Quando peço para ser são e rodeiam-me de loucura, de dragões e indiferenças, de pecados e indiferenças, de virtudes e indiferenças, e deixam-me envelhecer porque me dizem que os valores que eu defendo já definharam e eu não dei conta, porque o normal me surpreende, porque o meu corpo é distónico.
Quando o tempo pára, vedo o meu corpo ao desconforto.
E adormeço no meu quarto embalando a indiferença.
Os meus heróis morreram quando eu era novo e os de agora são fantasmas que ninguém reconhece, que ninguém descobre na multidão uniforme como a merda de um tapete de relva de cor verde enjoativa que se contorce e balança sem se importar para que lado pende, desde que penda para o mesmo lado.
Quando o tempo pára, trazem-me vinho e uma mulher.
Uma mulher que se oferece e não compreende que não pode ter ambos, corpo e alma por eu ser um só, ou uma mulher que eu não compreendo porque não sei olhar para baixo nem para cima, tragam-me antes o vinho antes que azede.
Porque quando o tempo pára...
O tempo pára.
Pára!

2 Crossroads:

Anonymous Anonymous said...

porque o tempo só parou para mim nos pesadelos, às vezes desejo não ter nome. que mesmo que me possam sentir não me saibam identificar.

3:32 PM  
Blogger Daniel C. said...

Anonimo,

Comentário bonito :)

Num templo grego da antiguidade havia uma inscrição sobre o pórtico onde se lia: "conhece-te a ti mesmo", não perguntava o nome, a idade, a profissão, a filiação, apenas pedia que quem lá entrasse se conhecesse a si mesmo... para que é que precisas de um nome? Aqui como lá, não é preciso.

O titulo deste post vem de uma canção dos Linda Martini que fala um bocadinho sobre isto.
O tempo não pára, a sua única constância parece ser a sua fome pelo passado, devora-o sem deixar migalha, por isso, por muito que custe ao tempo engolir os teus pesadelos isso acontecerá... nem que seja preciso ser empurrado com a água do rio styx...

Bjinho ou abraço conforme a preferência, obrigado pela visita e comentário!

4:02 PM  

Post a Comment

<< Home