Monday, October 02, 2006

...depois da maré encher


Choveu demais.

Há uma magia qualquer na água que cai. Hipnotiza-nos a sua imensidão molhada, a sua inevitabilidade cósmica, o seu advir sombrio. Há quem olhe no céu cinzento, e percorra com os olhos o trajecto descendente desde o céu, há quem olhe para o chão e veja a pequena gota a explodir contra o asfalto com o seu destino voador cumprido, pronta a repetir o ciclo de novo. Eu sempre preferi ver a chuva cair sobre o mar, ou este rio Douro que me enche a memória, nunca como ali senti o sublime destino cíclico que parece prender coisas, animais, elementos.

Mas hoje choveu demais.

E aquilo que parecia vir para dar vida, rapidamente se transformou em promessa de morte.
A terra iludida abriu os seus poros pensando que a água que a a arrastava e que em si abria sulcos semelhantes a feridas das quais como sangue a lama fluia, seria a mesma que semearia vida no seu deserto calcinado por demasiados dias de sol. E a terra iludida, deixou que o seu ventre esventrado mostrasse sementes que repousavam no seu seio desde o inicio dos dias, pensou que a água que corria lhes destinaria um melhor sitio, um sitio onde pudessem crescer. E a terra (tão iludida) não se importou que os ramos das árvores decanas lhe tocassem na pele, dobradas pelo peso da água que acumulavam, não se importou quando os ramos quebraram vencidos, e desprotegida a água levasse a terra que abrigava as raizes, naquele dia, as árvores não morreram de pé. E a terra espantada, viu como se enchia de chuva, viu como os charcos se uniam, viu como os seus tuneis fechavam.

Chovia demais naquele dia.

E contrariamente ao previsto, não era vida que prometia aquela água caindo, nem por revitalizar um deserto, nem por matar quem merecia.

Choveu demais.

E quando todos os charcos se uniram e se fundiram com o mar, nem aí parou de chover.
Não parou de chover quando a terra desapareceu submersa, e no lodo do fundo apodreciam sementes e árvores tombadas.
Também não parou de chover quando as aves cansadas e sem ramo onde pousar desistiram de voar e mergulharam pela última vez naquele mar.
E mesmo quando a vida cessou, vencida por tanta água parou de chover.
Naquele dia choveu até o mar tocar o céu.
E depois.
Não choveu mais.

3 Crossroads:

Blogger nexinha said...

Bonito, triste... e bonito... :) *

3:53 PM  
Blogger Maria João said...

lindo!
o mar tocou o céu...valeu a pena chover;)

obrigada pelo comment:)

Mia

6:11 PM  
Anonymous Anonymous said...

"Embora lave o medo
que há do fim
a chuva apaga o fogo
que há em mim
Ouço a voz de quem
me quer tão bem
E fico a ver se a chuva
a ouvirá também..."


CHUVA - by Ornatos Violeta


;-)

5:53 PM  

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